Estilo de Vida

Homem com HIV abandona coquetel e passa a injetar fórmula de biohackers ao vivo no Facebook

Tratamentos genéticos ainda estão em estudo, mas Tristan Roberts decidiu ser cobaia na esperança de se livrar do vírus da Aids

No momento que Tristan Roberts se tornou a primeira pessoa a injetar publicamente em si própria uma terapia genética experimental em busca da cura do HIV, ele estava sentado em um sofá de couro na sala de seu instrutor de ioga.

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O cenário não era nada parecido com o de um consultório médico. A mesa de café na frente dele estava cheia de seringas. Um cachorro vira-lata com traços de chihuahua usando um colar elizabetano – mais conhecido como abajur – roncava do seu lado.

O evento foi transmitido ao vivo no Facebook, e centenas de pessoas assistiram (a mãe de Roberts viu depois, e não ficou muito feliz com aquilo). À direita dele estava Aaron Traywick, chefe da Ascendance Biomedical, empresa que criou o tratamento. Uma rede de pesquisadores não identificados nos Estados Unidos reuniu os frascos que estavam na frente deles.

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Semanas depois, a experiência acabaria em frustração – em vez de diminuir, sua carga viral aumentou. Naquele momento, porém, seus idealizadores pareciam já tentar se prevenir de eventuais críticas por uma falha.

«Nós não aconselhamos que ninguém que esteja assistindo a esse vídeo faça o que está sendo feito aqui», disse Traywick, que não é cientista e se identifica como um «organizador comunitário», durante a transmissão.

«Tristan Roberts está agindo completamente dentro de seus direitos e de acordo com as regulamentações da FDA (Food and Drug Administration, a agência americana que controla alimentos e remédios) e dentro da lei deste país para se automedicar da maneira que achar apropriada. É o seu corpo e o seu direito.»

Roberts, um programador de 28 anos, não tem nenhum treinamento oficial em medicina ou em engenharia genética. Ele e Traywick são membros de uma comunidade crescente de biohackers, o movimento conhecido como «faça você mesmo» da biologia, da ciência médica e da genética, que surgiu e se espalhou fora das universidades e clínicas farmacêuticas.

Hoje existem conferências de biohackers e comunidades deles no Vale do Silício, Boston, Nova York e Austin, nos EUA, onde alunos do ensino médio, proprietários de startups de biomedicina e cientistas que se reúnem para ensinar e fazer experimentos juntos – que vão dos mais simples, como produzir cerveja que brilha no escuro, até aqueles que tentam curar doenças ou combater o envelhecimento.

O que Roberts estava prestes a fazer tem sido considerado pelos cientistas e especialistas em bioética como algo «arriscado» e «alarmante». A opinião mais áspera veio de Scott Burris, especialista em políticas de saúde pública para combater o HIV na Temple University, na Pensilvânia.

«Esse comportamento é delirante. Não me parece plausível nem mesmo que esse cara esteja no planeta Terra.»

Mas Roberts acredita que essas avaliações são excessivamente cautelosas, cercadas de convenções.

«Somos pessoas que correm riscos, mas não somos estúpidos», disse. «Acho que estamos caminhando para um momento em que pacientes e indivíduos sujeitos aos testes terão uma participação maior no resultado do experimento.»

Roberts se prepara para tomar a injeção | Foto: Ford Fischer/News2share

Em busca de cura

Roberts não é a primeira pessoa a injetar em si mesmo uma terapia genética não testada.

Pelo menos três pessoas já tentaram fazer algo parecido, injetando genes para melhorar a performance do organismo, inibindo a morte celular ou estimulando o crescimento muscular.

Mas essas autoaplicações aconteceram de forma privada. O programador é a primeira pessoa a fazer isso publicamente em busca de uma cura.

Seis anos atrás, ele foi diagnosticado com HIV. Nos últimos dois anos, decidiu parar de tomar o coquetel de medicamentos antirretrovirais.

Os motivos dele eram muitos. Ele odiava os efeitos colaterais dos remédios e temia que perder uma única dose pudesse dar ao vírus imunidade ao tratamento. Além disso, rejeitava a ideia de ter de tomar um medicamento para o resto da vida. Roberts queria simplesmente ser curado.

«Estou animado com a possibilidade de eventualmente curar isso talvez por alguns meses, talvez por alguns anos, ou indefinidamente», disse. «Mas só há uma forma de descobrir isso.»

Roberts encheu uma das seringas do frasco, levantou sua camisa e expirou bruscamente. «Queria dedicar isso a todas as pessoas que morreram sem poder ter acesso a esse tratamento», afirmou.

Então ele beliscou uma camada fina de pele do lado direito de seu umbigo e injetou a agulha. A pequena quantidade de líquido inserida nas suas células de gordura continha trilhões de plasmídeos, pedaços de DNA que teoricamente poderiam ativar a produção do antibiótico N6.

Um estudo do Instituto Nacional de Saúde (NIH) americano mostrou que o N6 conseguiu neutralizar 98% dos vírus HIV em testes realizados no laboratório. A substância veio de uma única pessoa, uma das poucas conhecidas pelos cientistas cujos anticorpos conseguem combater o vírus sozinhos.

A esperança de Roberts e dos criadores do tratamento na Ascendance é de que os plasmídeos conseguissem atravessar os núcleos das células dele e fazê-los produzir os anticorpos N6.

O objetivo é conseguir uma cura para o HIV – os biohackers acreditam que podem levar um tratamento ao mercado mais rapidamente e barato do que instituições cercadas de regulamentos e preocupações corporativas sobre lucro.

«O DNA é basicamente uma linguagem, e eu acredito que pessoas que já vivem nessa geração vão aprender a ser poetas nela», disse Machiavelli Davis, um amigo de Roberts que ajudou a desenvolver o tratamento, durante a transmissão o vivo no Facebook.

Ilustração mostra a ligação de anticorpos N6 (em azul e verde) a cópias de HIV na superfície do vírus (Foto: Mark Connors/NIH)

Riscos x eventuais benefícios

Muitos cientistas e especialistas em bioética argumentam que experimentos como esse são muito amadores para produzir qualquer resultado significativo, e que os perigos de uma autoaplicação são muito maiores que os possíveis benefícios ou que pacientes que aceitam esse tipo de tratamento muitas vezes nem sequer sabem com o que estão lidando.

«Eu temo fortemente que, sem uma estrutura robusta para a realização de avaliação e manuseio de riscos e questões de responsabilidade, o modelo Ascendance Biomedical só transferirá todas essas responsabilidades pesadas e complexas para os indivíduos, que assumirão custo e perigo», escreveu Eleonore Pauwels, um especialista em políticas científicas do Centro Internacional Woodrow Wilson, em Washington, e especialista em genômica.

Mas como agora qualquer um pode conseguir uma sequência genética customizada – inclusive com a facilidade e a conveniência de uma compra online -, pessoas como Roberts podem se aventurar nessa área da genética, antes completamente restrita aos especialistas.

A FDA, equivalente à Anvisa (agência de vigilância sanitária brasileira), tem poder para reprimir os testes de medicamentos não licenciados em humanos, e a venda de produtos e kits que alteram códigos genéticos para autoexperimentos é contra a lei. Mas ainda não está claro se é crime o ato de se automedicar com o uso de uma substância ainda não testada – e os cientistas amadores e biohackers se aproveitam disso para alimentar seu mercado.

«Nós temos um sistema médico que é muito paternalista, em que você não sabe o que acontece com seu corpo. O que você vê agora é o surgimento de um novo ‘biocidadão'», disse Pauwels.

«Como você democratiza (a medicina) sem assumir um certo risco? Essa é a grande questão.»

Checando os resultados

Três semanas depois, Roberts foi fazer seu segundo exame de sangue desde a primeira injeção. Em poucos dias, veria se aquilo estava ou não causando algum efeito no vírus.

«Estou animado para ver os resultados. Mas ao mesmo tempo mantendo os pés um pouco no chão. É raro que você acerte de primeira», afirmou ele. «Estou aqui pensando no longo prazo.»

Amigos e família ficaram apreensivos com seu desejo de se tornar o «paciente zero», mas sabiam que não adiantaria tentar demovê-lo da ideia. Alguns anos antes, ele havia deixado um emprego que pagava US$ 75 mil (R$ 241 mil) por ano dizendo que o dinheiro e o apartamento confortável onde vivia não o faziam feliz.

Roberts (à esq.), após fazer o exame de sangue, com Aaron Traywick

Agora, Roberts não tem endereço fixo – fica perambulando entre as casas do namorado, dos amigos e da família. Trabalha como freelancer na área de programação e insiste em ser pago somente com bitcoins, apesar de isso representar alguns desafios logísticos – ele quase não pôde pagar seu teste sanguíneo por causa de problemas para converter suas moedas virtuais em dólares.

No ano passado, foi preso durante um protesto sob a acusação de ter pichado a palavra «corrupto» na sede do FBI.

«Ocupem a cidade», gritou depois de ser colocado dentro do carro da polícia (após prestar serviços comunitários, ele conseguiu limpar sua ficha criminal).

Mas apesar de seu apetite pelo perigo, Roberts começou a se sentir um pouco mal três semanas após injetar o tratamento experimental.

Primeiro veio a erupção de feridas vermelhas na pele de suas costas – ele achou que havia sido picado por mosquitos, mas não tinha certeza. Depois, ficou febril por quatro dias, perdeu a fome e teve problemas gastrointestinais.

«Estou com medo de que possa ser o plasmídeo», afirmou. «Tenho 98% de certeza de que está tudo bem, mas há aqueles 2% que me fazem temer que possa ser algo horrível.»

O pior cenário era o de que o plasmídeo estivesse se multiplicando fora do controle. Mas será que os médicos de um pronto-socorro conseguiriam ajudá-lo mesmo sem conhecer a substância que ele injetou em si mesmo?

Outra ideia passou então por sua cabeça: tudo isso seria, na verdade, um sinal de que o tratamento realmente funciona?

O que dizem cientistas e outro biohackers

Os sintomas diminuíram dia depois, o que levou Roberts a ficar especulando sobre o que poderia estar acontecendo em seu corpo.

Quando fez o exame de sangue, o vídeo que o mostrava injetando a terapia experimental em si mesmo já havia sido visto mais de 20 mil vezes.

Mark Connors, cientista da NIH que descobriu o anticorpo N6, foi um dos assistiram às imagens – após serem transmitidas ao vivo, elas ficaram disponíveis no Facebook para quem quisesse vê-las.

O pesquisador ficou nada impressionado com o raciocínio por trás do tratamento.

«Eles parecem jovens muito inteligentes, que sabem de alguns fatos. Mas não de todos.»

O N6 é o anticorpo mais versátil a combater o HIV já descoberto, mas Connors explica que ele não pode simplesmente acabar com o vírus sozinho – e que ainda há um debate sobre ser possível ou não curar alguém do vírus apenas com anticorpos.

A proteína do HIV muta constantemente para impedir que nossos anticorpos a neutralizem. Mesmo com a potência do N6, o vírus ainda pode desenvolver resistência a ele, fazendo com que a «monoterapia» com esse anticorpo seja pouco eficiente como único tratamento, diz o cientista.

«Na maioria dos casos, não são as regras que fazem com que se demore tanto tempo (no desenvolvimento de medicamentos)», afirma. «Não se trata de a FDA estar sentada em cima de remédios. A verdade é que esse é um processo em que há muita discussão.»

O que também preocupa os cientistas sobre os experimentos da Ascendance é a falta de informações detalhadas a respeito da empresa no site dela – não há telefone, lista de funcionários ou conselheiros.

Traywick disse que isso acontece em parte por questões de propriedade intelectual, e em parte porque a empresa ainda é muito nova. Além disso, afirmou, é preciso preservar a identidade dos cientistas que estão por trás do desenvolvimento dos tratamentos para evitar que eles fiquem suscetíveis a problemas legais.

Por meio dele, a BBC conseguiu entrar em contato por telefone com o pesquisador que elaborou o tratamento de Roberts, que se recusou a revelar seu nome. Ele pediu para ser chamado de «M McConaughey», em referência ao ator Matthew McConaughey, que ganhou o Oscar de Melhor Ator ao interpretar um pesquisador amador do HIV nos anos 1980 no filme Clube de Compras Dallas (2013).

Na ligação, «McConaughey» disse que discordava da decisão de Trawick e Roberts de mostrar ao vivo a primeira injeção – sobretudo mencionando a palavra «cura» no vídeo. Ele concorda com Connors sobre a baixa probabilidade de essa primeira aplicação ter um impacto e teme que isso gere falsas expectativas nas pessoas que assistiram à transmissão.

«Mesmo dando o seu melhor para fazer as coisas rápido, você não é a natureza. A biologia é muito lenta e difícil», afirmou.

Entre o pequeno número de biohackers e pesquisadores que se autoaplicaram uma terapia genética publicamente, há um desacordo sobre o que há de ciência no tratamento a que Roberts se submeteu.

A BBC procurou Josiah Zayner, diretor-executivo de uma empresa que vende kits de engenharia genética para serem autoaplicados e que também fez transmissões ao vivo em que injetou as substâncias em si mesmo. Mas ele se recusou a comentar sobre a Ascendance ou Roberts, escrevendo que eles «têm pouca ideia do que estão fazendo».

Roberts e os amigos bebendo depois da revelação do resultado do exame

Brian Hanley, um especialista em microbiologia que aplicou em si mesmo uma terapia genética para aumentar seu vigor, diz que odeia ser chamado de biohacker. Ele disse não ver problemas em cientistas que fazem experimentos envolvendo tratamentos em si mesmos, mas teme que biohackers usem isso para promover esse tipo de teste em pessoas totalmente inexperientes, que vão assumir riscos que não entendem.

«Você pode ter problemas sérios, até mesmo morrer. O maior perigo é se infectar mesmo com alguma coisa», explicou.

Por outro lado, George Church, um pioneiro no estudo do genoma que virou referência para pessoas interessadas em autoexperimentação, avaliou que, apesar de sempre ter recomendado cautela, testes clínicos e o envolvimento de médicos, os resultados mais surpreendentes às vezes podem vir de um único paciente.

Ele citou o exemplo de Barry Marshall, um médico que em meados dos anos 1980 provou que as úlceras eram causadas por bactérias após tomar um «caldo infeccioso».

«Foi notável a ponto de fazer com que ele ganhasse o prêmio Nobel», contou Church. «Tudo é possível.»

Com a palavra, os exames

Em uma nova transmissão ao vivo no Facebook, Roberts decidiu mostrar para o público os resultados de seus exames de sangue – ele ainda não havia aberto o envelope.

A sala estava cheia de gente. Uma equipe de filmagem para uma série documental sobre biotecnologia estava ali preparada para captar sua reação. Aaron Traywick observou da cozinha, e três amigos de Roberts sussurravam ao fundo.

Sem os meios para testar a presença de N6 no sangue de Roberts, eles estavam confiando na contagem de carga viral que existisse nele para atestar os efeitos da terapia.

Um dia antes de injetá-la, seu sangue continha 11.912 cópias do vírus por mililitro. Ele esperava ver esse número cair para 2 mil ou menos. Se estivesse entre 2 mil e 8 mil, seria mais difícil fazer qualquer conclusão. Uma carga viral estável ou aumentada poderia indicar que o tratamento falhou.

Apesar de Roberts ter se entusiasmado com a ideia de um futuro no qual uma doença seria controlada pelo próprio paciente, em que a democratização dos medicamentos derrubaria a indústria farmacêutica, também se tratava de algo muito pessoal. Ele reconheceu que estava sonhando em poder contar para seu familiares, em pleno jantar de Ação de Graças, que o tratamento havia funcionado.

Ele também lembrou como se sentiu, após descobrir ser HIV positivo, ao se cortar com um papel – ao olhar para sua mão, viu seu sangue como um veneno.

«Isso é o que mais queria mudar. Não necessariamente curar a infecção, mas ao menos acabar com a possibilidade de passá-la para outras pessoas», afirmou.

Ele abriu o envelope com o resultado do exame bem devagar. E sorriu. «Ok… é, isso não era muito bem o que a gente esperava».

A carga de vírus de Roberts passou de 28.800 na segunda semana para 36.401 na terceira semana – níveis baixos, mas longe do resultado desejado.

Sua contagem de linfócitos T-CD4 – a célula do sistema imunológico que o HIV ataca – foi a maior que ele já havia visto, mas não havia como saber o que isso significava.

«Precisamos de mais informações», disse Traywick, que estava fora da câmera. Ele entrou na sala, se sentou ao lado de Roberts e disse, brincando. «Nós não te matamos.»

Nada a comemorar

Depois que a transmissão foi finalizada, Traywick se recostou no sofá. Um dos amigos de Roberts silenciosamente devolveu o balde de espumante que estava na cozinha para a geladeira. Preferiram abrir um vinho vermelho.

Traywick disse que isso era parte da visão de sua empresa – mostrar falhas e sucessos publicamente.

«Estou um pouco desanimado. É difícil», disse, por sua vez, o paciente.

Apesar do fracasso inicial, Roberts afirmou continuar acreditando que as terapias genéticas que ele e outras pessoas estão testando serão a chave para erradicar o HIV, bem como as demais doenças que ainda intrigam a medicina.

«Essas experiências têm aberto muitas possibilidades, estão redefinindo o que significa ser humano.»

Em dezembro, pesquisadores da Ascendance vão testar a segunda versão da substância, que contém de 10 a 100 vezes o número de plasmídeos da primeira. Roberts planeja aplicá-la também. Ele não pensa em voltar aos tradicionais coquetéis de remédio, e diz esperar ser plenamente curado um dia.

Connors, o pesquisador da NIH, também assistiu à transmissão ao vivo em que o rapaz revelou os resultados dos exames.

Ele discorda da opinião dos biohackers de que métodos tradicionais de pesquisa avançam de maneira muito devagar – testes humanos de injeções de N6 deverão acontecer ainda no início de 2018, diz.

Para ele, Roberts deveria voltar para os antivirais.

«Me corta o coração ver isso», afirmou.

Mas ele reforçou que o jovem tem algo em comum com os pacientes cujos corpos naturalmente criam anticorpos como N6, bem como com outros que estão sendo estudados na luta para combater o vírus.

«As pessoas que compõem esse grupo são aquelas que recusam o tratamento», disse ele.

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