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A emocionante decisão de juiz para ajudar jovem que viveu por 2 anos em galinheiro a ter uma casa

Abandonada pela mãe, adolescente viveu sozinha em galinheiro, localizado na beira de estrada na Bahia, e sobreviveu por meio da doação de alimentos.

«Em janeiro próximo completarei 13 anos de magistratura e nunca imaginei julgar um processo como o que ora se apresenta», escreveu o juiz Luciano Ribeiro Guimarães, em uma sentença proferida em 16 de outubro.

O caso ao qual o magistrado se refere envolve a adolescente Laura*, na época com 17 anos. A jovem havia passado dois anos de sua vida morando em um galinheiro.

Anos depois, para conseguir residência própria, buscou o programa social Minha Casa, Minha Vida em Jequié, na Bahia, onde mora. Por ser menor de 18 anos na época, ela precisaria ser emancipada para que pudesse pleitear uma casa no projeto. Desta forma, recorreu à Justiça.

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O pedido de emancipação judicial foi feito pela Defensoria Pública da Bahia. Nos autos, a defesa da jovem relatou o histórico de abandono vivido por Laura.

O juiz Luciano Ribeiro confessa que ficou comovido ao conhecer a história dela.

«Lidamos com muitos casos de miséria e pobreza. Mas nunca havia visto uma situação que chegasse perto disso. Foi algo muito peculiar, de extrema miséria. Jamais consigo imaginar que alguém viveu uma situação como a dela», diz à BBC News Brasil.

A vida no galinheiro

Laura não conviveu com o pai e morava com a mãe e outros seis irmãos. Conforme relatos da jovem à assistência social, ela foi abandonada pela genitora aos 11 anos. Enquanto alguns irmãos mais novos ficaram com conhecidos da família, a garota se mudou sozinha para um galinheiro às margens da rodovia BR-330, em Jequié.

«A mãe da Laura havia tido a filha com 15 anos e a família vivia em situação de fome e miséria. É uma situação de extrema pobreza que se perpetuou na história de mãe e filha», diz o juiz. As causas que levaram a mulher a deixar os filhos não constam nos autos do processo.

No galinheiro, localizado na beira da estrada, Laura sobrevivia por meio de alimentos doados por pessoas que trabalhavam nas proximidades.

O espaço que Laura dividia com as galinhas pertence a uma propriedade rural da região. Fontes ouvidas pela BBC News Brasil não souberam dizer se o proprietário da área sabia que a jovem havia transformado o galinheiro em moradia.

Por pouco mais de dois anos, a adolescente dividiu a vida entre dormir no galinheiro, receber doações de alimentos e roupas e visitar os irmãos. Mesmo afastada, ela mantinha os laços com os pequenos.

«Pelo histórico de vida da jovem, ela não somente cuidou de si, mas também de seus irmãos, ainda que à distância», disse uma psicóloga que acompanhou o caso da adolescente, em relato à Justiça.

Laura não tinha nenhum tipo de documentação, nem recebia auxílio de algum projeto social. Desde o período em que morou no galinheiro, ela não frequentou mais a escola. Conforme os autos, a jovem deixou de estudar no terceiro ano do ensino fundamental e não retornou mais.

Quando ela tinha entre 14 e 15 anos, se envolveu com um rapaz mais velho – sua idade não consta dos autos. Os dois iniciaram um relacionamento e se mudaram para uma casa emprestada por um conhecido dele. A renda da família era correspondente a R$ 100, oriundos do trabalho do namorado da adolescente, que era carroceiro.

Mãe aos 15

Aos 15 anos, Laura engravidou do primeiro filho. De acordo com relato da assistente social Ariadini de Almeida Dócio, o bebê morreu meses após o nascimento.

«Em razão do que se chama ‘mazelas da pobreza’, acredito que, por dormir com a criança em uma cama de solteiro, a jovem pode ter dormindo sobre ela (a criança), matando-a», descreveu a Justiça.

Pouco menos de um ano depois, Laura engravidou novamente. Desta vez, procurou ajuda no Centro de Referência da Assistência Social (Cras) de Jequié. No lugar, contou a sua história. A partir de então, a equipe do centro de atendimento passou a auxiliá-la. Nessa época, Laura fez sua primeira carteira de identidade e realizou exames pré-natais.

Segundo a assistente social, o companheiro de Laura se mostrou «uma pessoa muito presente e atenciosa, tendo, inclusive, comparecido em todos os atendimentos e exames».

Após o nascimento do segundo filho, a adolescente tornou-se beneficiária do programa social Bolsa Família. O recurso, junto com a renda do companheiro dela, passou a ser utilizado para que o casal e a criança pudessem se manter.

O proprietário da casa em que a família vivia pediu o imóvel, pois disse que precisaria se mudar para o lugar. O fato foi informado à assistência social de Jequié, que incluiu Laura no cadastro único do Ministério do Desenvolvimento Social e a inscreveu no programa Minha Casa Minha Vida.

Laura se separou do companheiro. Ela e o filho passaram a morar na residência de uma senhora que cria com uma das irmãs da jovem.

Neste período, ela foi sorteada como beneficiária de uma residência no Minha Casa, Minha Vida. Porém, foi impedida de receber o imóvel, pois tinha menos de 18 anos. Para resolver a situação, a assistência social de Jequié recorreu à Defensoria Pública da região

«Entramos em contato com os órgãos municipais responsáveis pelo programa de habitação. Mas fomos informados da impossibilidade de ela ser contemplada com o programa habitacional, porque era menor», explica o defensor público Antônio Agnus Boaventura.

«É com muita tristeza e sofrimento que o defensor público tem que lidar com coisificação do ser humano, com a normalização das tragédias sociais. O pior é que cada vez mais os entes públicos e os atores do sistema de Justiça vêm se preocupando com números e metas, esquecendo que atrás daqueles papéis existem seres humanos e suas histórias», diz Boaventura à BBC News Brasil.

Para auxiliar a jovem, a Defensoria entrou com uma ação na Justiça para pedir que Laura fosse emancipada e, desta forma, passasse a ser considerada apta a receber o imóvel.

Emancipação na Justiça

No pedido de emancipação encaminhado à Justiça, o defensor público apontou que a medida garantiria o direito fundamental à moradia. Ele pontuou que Laura exerce «atos da maioridade civil, exercendo deveres do poder familiar, responsabilizando-se por seu filho, além do fato de que desde os 11 anos de idade provém seu próprio sustento».

Em seu parecer, o Ministério Público da Bahia apontou que, conforme a Constituição Federal, não seria o caso de emancipação judicial. Isso porque Laura não estuda, não exerce trabalho remunerado, nem possui renda própria, «sobrevivendo do benefício social do Bolsa Família».

No entanto, a entidade pontuou que o caso da adolescente foge à regra, pois deve ser levado em consideração o princípio constitucional do respeito à dignidade da pessoa. Desta forma, o órgão se manifestou a favor da emancipação judicial da jovem.

Na audiência sobre a ação, o juiz Luciano Ribeiro ouviu testemunhas, como a psicóloga que acompanhava Laura e a assistente social. Ele optou por não fazer perguntas à jovem.

«Achei desnecessário que ela contasse sua história, porque os autos contavam. Não quis mexer em feridas dela», comenta.

Segundo o magistrado, a adolescente chorou todo o tempo em que esteve em sua frente.

«Ela parecia ré, porque só fazia chorar e ficava de cabeça baixa.»

O juiz tem uma filha de 13 anos e afirma que soube separar a função de pai com o trabalho como magistrado durante a audiência sobre o caso. Ao proferir a sentença, porém, admite não ter conseguido dissociar as duas características.

«Como era uma situação diferente, resolvi fazer um trabalho diferente também. Lógico que tem que dar fundamentação com a Lei, mas fiz isso em tom de desabafo, como pai e como ser humano», explica.

Na sentença, ele ressalta que escreve o texto em primeira pessoa do singular, como nunca havia feito em toda a carreira.

«Todos os julgados, até então, foram proferidos de forma distante, pelo Juízo. Todavia, dessa vez será diferente», assinala.

«E a diferença se dá por diversas questões. Não me recordo em ter prolatado uma sentença com tanto sofrimento e com lágrimas de tristeza saltando dos meus olhos. Impossível não se compadecer com a situação da autora», acrescenta.

Ainda na sentença, ele pontua que não é possível julgar o caso utilizando somente o Código Civil.

«Devemos ir além, utilizando-se de outras disposições do nosso ordenamento, na medida em que o caso em apreço não versa sobre mero direito à emancipação, mas ao direito a uma vida digna e ao direito à moradia de uma jovem massacrada por uma sociedade injusta e absurdamente desigual.»

Assim como o Ministério Público da Bahia, ele também frisa que, conforme o Código Civil, Laura não estaria apta para ser emancipada, por não possuir diploma de ensino, estabelecimento ou emprego.

«Mas a situação da requerente é muito grave e, por isso, não se pode encerrar a análise da questão no Código Civil, partindo-se, portanto, e de forma sistêmica, a um exame harmônico com princípios constitucionais.»

Ao determinar a emancipação da adolescente, o magistrado utiliza trecho das declarações da assistente social que atendeu a jovem. Nas palavras da mulher, Laura «não somente tem condições de ser emancipada, mas se encontra emancipada desde os 11 anos de idade».

O juiz relata, na sentença, que deu um abraço em Laura, ao fim da audiência de instrução sobre o caso. Ele relata que «foi incontrolável o acalentador desejo de um pai em abraçar aquela jovem, transmitindo-lhe algum conforto, carinho e esperança».

«Comprovou-se que a vida já te emancipou, e agora quem o faz é o Poder Judiciário, que lhe deseja paz e inteireza, para cuidar de si, da sua família e irmãos, pois se você ainda não tem esses direitos, caráter, honra e brio já demonstrou que possui, de sobra. Como toda sertaneja, és uma forte!», assevera.

A casa

Mesmo com a emancipação em outubro, Laura não conseguiu a casa no programa social.

«Como ela não estava emancipada logo que foi sorteada, e por isso não preenchia os requisitos necessários, acabou perdendo a casa para outro candidato», explica o juiz.

No conjunto habitacional do Minha Casa, Minha Vida em Jequié não há, atualmente, casa disponível.

«Algumas residências do projeto vão ser retomadas por falta de pagamento. A jovem pode ser a beneficiária de uma dessas casas», diz o magistrado.

Porém, ele frisa que teme que Laura não tenha condições para arcar com os valores do projeto social, que cobra uma parcela mensal para pagamento da casa.

«Por isso, empresários da cidade estão conversando sobre a possibilidade de construir uma residência para ela. O caso dela gerou muita repercussão na cidade e muitas pessoas se interessaram em ajudar.»

Em novembro, Laura completou 18 anos. Ela retomou o relacionamento com o pai do filho. Eles vivem em uma casa alugada por meio de recursos da Prefeitura de Jequié, que concedeu aluguel social para a jovem. O benefício tem duração de três meses. Ao fim, o destino da jovem ainda é incerto.

A reportagem tentou conversar com Laura, mas os defensores públicos que cuidaram do caso e o juiz afirmaram que ela tem preferido por não conceder entrevistas.

«A jovem quer recuperar o tempo perdido, quer trabalhar, voltar a estudar e ter uma vida normal. Ela não quer ficar com a marca de ‘a menina do galinheiro’. Ela quer seguir em frente», relata o magistrado.

*O nome da jovem foi alterado para preservar sua identidade.


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