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Ex-menino de rua supera drogas, tentativa de suicídio e agora luta contra desperdício de comida

Britânico estabeleceu como meta acabar com a fome no mundo por meio de projeto que redireciona alimentos ainda próprios para o consumo que iriam parar no lixo para atender pessoas de baixa renda e estudantes que chegam à escola sem ter comido ou bebido nada.

Adam Smith tentou se matar, sete anos atrás. Agora, como projeto de vida, o que ele quer é acabar com a fome no mundo.

O britânico de 32 anos é o fundador de um projeto que, desde 2013, destinou 3,5 mil toneladas de alimentos ainda próprios para consumo – mas que iriam parar no lixo – a lanchonetes, lojas e armazéns que alimentaram, até o momento, 1,2 milhão de pessoas em oito países.

O surgimento da iniciativa foi precedido por uma vida conturbada em que Smith precisou superar anos de depressão. Ele morou nas ruas na infância, e, já adulto, lutou contra a dependência de álcool e outras drogas. No limite, ele tentou, mais de uma vez, o suicídio.

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Foi depois de uma dessas tentativas que ele assistiu à cena que mudaria sua trajetória – com impacto para uma multidão de homens, mulheres e crianças beneficiados com o projeto.

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«Eu estava na Austrália, trabalhava em uma fazenda e alimentos que os supermercados não podiam mais vender estavam sendo dados aos animais», lembra ele. «É absurdo que possam cancelar contratos de última hora e esses fazendeiros tenham de dar a comida aos porcos em vez de darem a pessoas. Não faz sentido», diz, afirmando ter dito ao patrão na época que ia «usar esse desperdício para alimentar o mundo».

Para alcançar esse objetivo, Smith criou o The Real Junk Food Project (O projeto da verdadeira ‘comida-lixo’, em tradução livre), no Reino Unido, menos de um ano depois desse episódio que se passou em terras australianas.

Caminho para a liberdade

Em vez de tratar do que comumente se chama de junk food – aquela com alto teor calórico, mas com níveis reduzidos de nutrientes – o projeto abrange alimentos que agora deixam de ser jogados fora para virarem refeições destinadas a pessoas de baixa renda ou sem qualquer dinheiro para consumi-los. Uma condição de vulnerabilidade que o próprio Smith sentiu na pele.

«Eu vivi na rua por dois anos, aos 12 anos de idade», diz, sem detalhes, contando que, antes disso, aos 10, teve de tomar antidepressivos e chegou a ser internado compulsoriamente em um centro de saúde mental.

Anos mais tarde, após uma das tentativas de dar fim à própria vida, Smith aceitou o conselho de um amigo. Ele saiu da cidade onde havia nascido e crescido – Leeds, no Reino Unido – para tentar recomeçar a vida em Melbourne, na Austrália, onde um conhecido que era chef de cozinha o chamou para trabalhar lavando pratos em um restaurante, onde, depois, aprendeu a cozinhar.

Smith também se tornou chef, função que desempenhou por uma década, o britânico chegou a ganhar 120 mil dólares (o equivalente a R$ 472,8 mil) por ano.

Acabou, porém, viciado em álcool e outras drogas.

Com acesso fácil a substâncias que usava e rodeado por pessoas que enfrentavam problemas parecidos, mais uma vez ele decidiu mudar de rumo.

Tentando obter a cidadania australiana, ele foi trabalhar na fazenda, onde se surpreendeu com o desperdício de alimentos e teve o estalo para criar seu projeto.

O tamanho do desperdício

Aproximadamente 30% ou 1,3 bilhão de toneladas de toda a comida produzida no mundo é perdida ou desperdiçada todos os anos, segundo estimativa da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).

No Brasil, o montante é estimado em 41 mil toneladas ou a uma carga capaz de preencher 625 mil caminhões com verduras, frutas, e legumes.

Mais da metade das perdas (54%) em âmbito mundial ocorrem nas fases de produção, armazenamento e transporte. Já o desperdício posterior, que corresponde a 46% do total, está relacionado a hábitos dos consumidores ou a questões ligadas às vendas.

É justamente nessa frente que o projeto de Smith atua para evitar que o destino da produção seja a lata do lixo – ao mesmo tempo em que quase 1 bilhão de pessoas passam fome no mundo.

«O que queremos fazer é criar práticas mais responsáveis. Sabemos que há armazéns por todo o Reino Unido, por exemplo, que estão, neste momento, cheios de comida que já passou da validade, que não pode mais ser vendida. É mais barato para os donos desses alimentos armazená-los simplesmente do que descartá-los», diz ele.

«É o que está acontecendo e está completamente fora de controle», acrescenta.

‘Encher barrigas, não lixeiras’

Na página do Facebook criada para divulgar o projeto, o Real Junk Food é descrito como «uma rede global e orgânica de lanchonetes ‘pague quanto quiser’ que redireciona alimentos que seriam destinados ao lixo para criar refeições deliciosas e saudáveis».

A descrição faz menção à venda da comida em estabelecimentos onde o consumidor é livre para escolher quanto quer ou pode pagar. Foi com um desses estabelecimentos – que abriu em 2013 após uma grande busca por espaços vazios ou cozinhs que poderia usar em Leeds – que o projeto teve início.

A origem dos produtos são supermercados, atacadistas e lojas agrícolas.

Representantes do projeto passam diariamente nesses estabelecimentos e recolhem pães, verduras, legumes e quaisquer outros itens que seriam descartados ou guardados em depósitos por estarem perto do vencimento, com a embalagem superficialmente danificada ou por fazerem, por exemplo, parte de encomendas que receberam, mas que acabaram canceladas.

«Você ficaria surpreso com a variedade de comida (que recebemos)», diz Shirley Southworth, cozinheira chefe do projeto em uma das lanchonetes parceiras na Inglaterra, onde é responsável por alimentar até 100 pessoas por dia com o que recebe de mantimentos.

«Postas de salmão defumado e camarões frescos enormes» estão na lista do que, na visão dela, «há de melhor» no cardápio do dia.

E tudo, afirma, pode ser consumido com segurança.

A comida recolhida em apenas uma das lojas parceiras, exemplifica Andy, gerente do depósito de alimentos do projeto, é suficiente para alimentar uma família de quatro pessoas durante semanas.

O veículo que usa para coletar parte dos produtos estampa, em letras grandes e vermelhas, que «é preciso encher barrigas e não lixeiras».

No depósito, prateleiras armazenam grandes recipientes de molho, latas de atum e feijão, além de caixas de cereais. Em um grande freezer no local também ficam guardados alimentos como sorvetes e frutos do mar.

Quem se beneficia

Atualmente, 120 lanchonetes ao redor do mundo preparam e servem refeições a partir da comida distribuída pelo projeto. Além do Reino Unido, elas estão localizadas no Japão, em Israel, na Coreia do Sul, na África do Sul, na Austrália, na França e na Alemanha.

Os alimentos também são destinados a armazéns ou a sharehouses, como são chamados esses locais que recebem a comida de diversas fontes e abrem suas portas ao público também na base do «pague quanto quiser».

Cerca de metade dos grandes supermercados do Reino Unido participam como fornecedores, junto com atacadistas e pequenas lojas agrícolas.

Além de pegar os excedentes desses estabelecimentos, o projeto oferece a eles orientações sobre como reduzir o desperdício e melhorar os lucros.

«Nós não somos um conceito social, somos um conceito de meio ambiente. Estamos aqui para impedir o desperdício de comida do ponto de vista ambiental», diz Smith.

«A questão social acaba sendo um subproduto, já que para frear o desperdício precisamos alimentar as pessoas com isso», complementa.

Escolas

Parte dos alimentos coletados é, ainda, destinada a mais de 50 instituições de caridade e escolas.

Cerca de 15 mil crianças de escolas situadas em Leeds são beneficiadas com a iniciativa.

Esse braço do projeto – chamado Fuel For School (ou Combustível para a escola, em tradução livre) surgiu após visitas que Smith fez a instituições de ensino com o filho. Numa delas, o chef falava sobre maçãs quando crianças demonstraram desconhecer a origem da fruta.

«Achavam que elas vinham de plásticos – numa referência provável a embalagens – e aquilo mexeu muito comigo», diz.

O objetivo, afirma, não é só usar o desperdício de comida para alimentar os alunos, mas também aumentar a conscientização sobre o tema.

Segundo informações disponíveis no site do projeto, a porcentagem de alunos dessas escolas que chegam ao local sem terem comido ou bebido nada é alta.

Smith se lembra de quando levou 9 toneladas de milk shake para o pátio de uma delas. Crianças que estavam ali começaram a chorar. «Algumas não haviam comido nada naquele dia e aquilo mexeu com elas», diz.

Desafios

O projeto conta com apoio de centenas de parceiros, mas enfrenta também resistência.

«Alguns varejistas no Reino Unido se recusaram a doar comida ao projeto porque não querem ver imagens de pessoas pobres comendo produtos de marca com seus nomes estampados», revela.

Outro desafio é o financeiro.

O projeto recebe doações privadas, ajuda do governo e é em grande parte tocado por voluntários. Em algumas lojas e lanchonetes que operam no sistema de «pague quanto quiser» ele só gera, no entanto, cerca de US$ 1 (cerca de R$ 3,80) por cabeça, e o dinheiro, diz Smith, muitas vezes é restrito.

Agora, aos 32 anos, ele tem pressa e impôs a si mesmo um prazo de 10 anos para acabar com a fome no mundo.

«Não medimos o sucesso do projeto pelo quanto crescemos. Medimos quando a existência dele não for mais necessária.»


* Entrevistas contidas no texto foram originalmente veiculadas no programa The Food Chain, da BBC World Service – que aborda aspectos econômicos, culturais e científicos da comida – em um episódio apresentado pela jornalista Emily Thomas. O Real Junk Food Project ficou em segundo lugar no Prêmio World Service Global Food Chain Award da BBC, em 2018, após ter sido indicado por ouvintes do programa.

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