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“Tento dar conforto e carinho”: o relato da médica brasileira em hospital que atendeu centenas de feridos em Gaza

Anestesista Liliane Mesquita, da organização Médicos Sem Fronteiras, usa suas ‘férias’ de hospital em Brasília para ajudar a atender população em região que na segunda-feira teve confrontos com 58 mortos e 2,7 mil feridos.

A médica brasileira Liliane Mesquita, de 42 anos, saiu de um plantão de 24 horas em um hospital em Brasília e foi direto para o aeroporto. Embarcou rumo à Faixa de Gaza, onde está de «férias», trabalhando como anestesista para a organização Médicos Sem Fronteiras.

Ela está no hospital Al Aqsa, na Faixa de Gaza, próximo à fronteira com Israel, que recebeu 336 pacientes na segunda feira, todos vítimas do mais violento dia nos confrontos entre palestinos e israelenses desde 2014. Segundo autoridades palestinas, pelo menos 58 palestinos foram mortos e 2,7 mil feridos por soldados israelenses na fronteira entre Israel e o território.

Milhares de palestinos tinham participado de protestos na fronteira contra a inauguração da Embaixada dos Estados Unidos em Jerusalém.

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«Eram tantos pacientes que o centro cirúrgico, com três salas de cirurgia, foi insuficiente», afirmou, por WhatsApp, à BBC Brasil, acrescentando que foi preciso operar duas pessoas na mesma sala ao mesmo tempo e ainda usar a sala de recuperação para fazer cirurgias, «tamanha a demanda daquele dia». No dia seguinte, um parto foi feito ao lado de um paciente ferido a bala que recebia cuidados médicos.

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Ela contou que, não apenas em caso de guerra, mas em qualquer situação em que há grande fluxo de pacientes, é protocolo fazer uma triagem, identificando casos mais graves como «vermelho» para priorizá-los e para tentar estabilizar o maior número possível de casos.

«Não se tem tempo hábil, nem recurso humano suficiente para operar todos… o que se faz é o que se chama de controle de danos num primeiro momento», justifica.

A maioria dos 40 feridos que foi parar no centro cirúrgico do hospital onde Liliane está trabalhando em Gaza eram homens, jovens e com ferimentos nas pernas, causados por tiros.

Entre as quase 60 pessoas mortas na segunda-feira estavam sete crianças e um homem que teve as duas pernas amputadas, segundo as autoridades palestinas. Israel mobilizou mais de 100 atiradores, muitos deles de unidades especiais, em diferentes pontos da fronteira, durante os dias de protestos na região.

Há seis semanas que palestinos da Faixa de Gaza participaram desses protestos, a chamada «Grande Marcha de Retorno» que terminou na terça, 15 de maio – data em que palestinos lembram a «nakba», «a catástrofe», o êxodo em massa ocorrido há 70 anos e que está na raiz do conflito de décadas com os israelenses.

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos criticou Israel pelo «uso indiscriminado da força» contra os manifestantes palestinos. Israel diz que agiu legitimamente para proteger seus civis de militantes que tentam violar a fronteira.

Os confrontos se intensificaram na região por causa da transferência da Embaixada americana de Tel Aviv para Jerusalém. O gesto americano simboliza a aceitação de Jerusalém como capital de Israel. Os palestinos também reivindicavam o direito de ter Jerusalém como capital de seu futuro Estado, e havia um acordo entre as duas partes de que o status da cidade seria decidido no estágio final de negociações de paz – que estão suspensas.

‘Não me assusto mais’

A médica brasileira, que nasceu no Rio e mora há 16 anos em Brasília, não hesitou em dizer que «ama» estar em Gaza. Ela é católica e diz que, em algumas situações e a depender de onde trabalha, precisa usar o hijab, o véu que muçulmanas usam para cobrir a cabeça.

Ela disse que já não se impressiona mais com a violência da região. «Não me assusto tanto com essas situações por já ter vivido outras vezes situação de guerra», diz, admitindo que tenta dar apoio psicológico aos colegas que estão pela primeira vez numa área de conflito.

Liliane está em sua terceira missão em Gaza, que visitou pela primeira vez em 2012 e, depois, em 2014. Já viajou 11 vezes para integrar equipes da Médicos sem Fronteiras.

Esteve em uma maternidade no Afeganistão, em um hospital erguido pela organização em Mossul, no Iraque, e também no Iêmen.

Ela diz que entrou para a Médicos sem Fronteira por vontade de ajudar, principalmente depois que perdeu os pais e o irmão caçula, que morreram de câncer. E por que ficou? «Por ter sido a experiência mais transformadora da minha vida».

Vida e morte

Sobre o conflito entre palestinos e israelenses, ela diz ter «amigos nos dois lados». «Minha única função é, exclusivamente, atender quem precisa de anestesia e tentar dar amor, conforto e carinho», afirma.

A médica brasileira conta ainda que, além de receber feridos em protestos, seu hospital atende todas as «demandas de um hospital local». «As pessoas continuam ficando doentes, as mulheres continuam tendo filhos», observa.

E foi assim que acabou ajudando no parto de uma menina, na terça-feira, na mesma sala em que um homem ferido no confronto de segunda estava sob cuidados médicos. O nascimento, segundo ela, «quebrou o clima de tensão no hospital».

Liliane também anestesiou uma criança vítima de queimadura – caso que não estava relacionado ao conflito.

A equipe da Médicos Sem Fronteiras no hospital de Liliane em Gaza foi reforçada.

«A vida continua», avalia. No fim das férias em Gaza, Liliane volta a Brasília. Chegará numa quinta e, no dia seguinte, já começa a trabalhar.

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