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O que acontece com os combatentes do Estado Islâmico quando eles são capturados?

De julgamentos duvidosos a programas de reabilitação, autoridades de todo o mundo têm adotado métodos distintos – e muitos dilemas – para lidar com jihadistas; caso mais premente agora é o de britânicos que decapitaram jornalista e agora estão presos por tropas curdas.

Os nomes de Alexanda Kotey e El Shafee Elsheikh não são mundialmente conhecidos, mas os atos atribuídos a eles, sim.

Militantes do grupo autodenominado Estado Islâmico (EI), Kotey e Elsheikh são acusados de pertencer à célula islâmica que, entre outros crimes, em 2014 decapitou o jornalista americano James Foley e o agente humanitário britânico David Haines, gravando o momento das mortes.

Considerados os últimos integrantes dessa célula ultrarradical, conhecida como "Os Beatles" (por seu sotaque britânico), eles estão em poder das tropas curdas, aliadas dos Estados Unidos nos combates no norte da Síria.

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De nacionalidade britânica, eles foram chamados pelo jornal Guardian como a "face da crueldade do EI".

Negocia-se agora se eles serão entregues às autoridades dos EUA ou Reino Unido (seu país de origem).

Eles querem ser entregues às autoridades britânicas. "A minha experiência é que os juízes britânicos são muito justos", disse recentemente Kotey em entrevista à emissora CNN.

Mas há relatos de que ambos tenham perdido sua nacionalidade britânica, algo que não foi oficialmente confirmado.

De qualquer modo, sua condição de cidadãos do Reino Unido é algo a que se apegam em busca de um processo judicial com garantias.

Seus casos colocam em evidência os dilemas envolvendo o destino de combatentes do EI ao serem capturados – e depois de terem praticado atos extremistas.

O programa The Inquiry, da BBC, investigou a resposta a esse desafio em diferentes lugares do mundo.

No Iraque

Em novembro de 2016, as tropas do Exército iraquiano entraram em Mossul, bastião recém-recuperado do controle do Estado Islâmico.

"Não há água nem comida. Temos que ir embora", disse à época uma das mulheres que abandonaram a cidade, junto a milhares de outros iraquianos.

Eles são forçados a dar seu nome nos postos fronteiriços controlados por agentes de inteligência equipados com computadores portáteis. Algumas pessoas são retidas, acusadas de terem sido combatentes do Estado Islâmico.

Belkis Wille, investigadora da ONG de direitos humanos Human Rights Watch, passou messes acompanhando o destino de suspeitos de pertencer ao EI, bem como convivendo com famílias que suportaram os horrores da vida sob o grupo extremista.

"A demanda popular é de ver mortos aqueles que os fizeram viver em um inferno", diz ela.

Willie descobriu que muitos dos detentos nos postos fronteiriços foram amontoados em centros de detenção improvisados em casas abandonadas de cidades pequenas.

Certa vez, o diretor de um desses centros a autorizou a visitar o local.

"Vi algo que nunca esquecerei. Era um quarto de 4 x 6 metros. Não consigo descrever nem o odor nem a temperatura do ambiente. Havia ali quase 314 homens e meninos amontoados em um espaço tão pequeno que ninguém sequer podia se deitar. E eles haviam passado quatro meses ali", relata.

"A ponto de quatro pessoas terem morrido no cativeiro, por culpa do calor e do odor."

Todos esses presos eram iraquianos. Alguns haviam sido presos por forças de segurança depois que seus nomes apareceram em documentos do Estado Islâmico.

Outros foram denunciados por vizinhos.

"Na realidade, deixa-se à comunidade local que dê uma lista de nomes. As tropas de segurança tratam esses nomes como um fato consumado (de que pertenceram ao EI). Se seu nome está nessas listas, você será detido e interrogado e provavelmente torturado para confessar. Em mais de 95% dos casos, houve condenações baseadas apenas nessas confissões."

Wille diz que, ainda que haja advogados presentes nos julgamentos, eles são uma "mera formalidade". Não se encontram com os acusados antes, nem emitem uma palavra durante as sessões da Corte.

E o desfecho é sempre o mesmo: uma condenação à prisão perpétua ou à pena de morte.

A representante da HRW diz que a maioria dos condenados encara a sentença com resignação.

"Todos são condenados sob o mesmo critério, a lei de contraterrorismo", diz ela.

E, tratando-se de dezenas de milhares de suspeitos, os processos judiciais muitas vezes se prolongam por anos e anos.

"Investigar cada caso adequadamente tornaria as coisas mais difíceis, mas esse é o trabalho (esperado) do sistema judicial", diz ela.

Sob as leis iraquianas, a responsabilidade penal começa aos 9 anos de idade. Willie diz que viu meninos de 13 anos sendo julgados.

Na Rússia e na Ásia Central

Anna Matveeva, pesquisadora da universidade King’s College, de Londres, entrevistou famílias da Ásia Central que viram seus filhos partir para combater ao lado do Estado Islâmico, bem como policiais que se especializaram em persegui-los.

Segundo ela, na maioria dos países da Ásia Central, essas famílias acabam sendo acossadas por oficiais de inteligência e privadas de sua cidadania.

Ao mesmo tempo, muitos dos combatentes do EI que fugiram da Síria e do Iraque se refugiaram em lugares como Ucrânia e Afeganistão, para continuar sua luta.

A Rússia, por sua vez, também enfrenta o desafio de ver jovens russos partindo para o Oriente Médio com o objetivo de se juntar ao EI. Um deles é a jovem Varvara Karaulova, interceptada quando tentava cruzar a fronteira entre Turquia e Síria.

O presidente Vladimir Putin estima que entre 5 mil e 7 mil cidadãos russos ou de ex-repúblicas soviéticas tenham aderido a grupos jihadistas.

Matveeva diz que uma estratégia das autoridades russas tem sido usar os detentos que cumprem pena de prisão para tentar dissuadir outros possíveis jihadistas. Os detentos são compelidos a gravar "mensagens de conscientização" contra a radicalização.

Arábia Saudita

O pesquisador Abdulah Al Saud, do Centro para o Estado da Radicalização e Violência Política do King’s College, estuda o que a Arábia Saudita faz com os jihadistas do país que voltam para casa.

"As estimativas oficiais são de que 600 ou 700 tenham regressado", diz ele.

Caso acredite-se que eles tenham tido um papel-chave no EI, eles podem ser condenados à prisão perpétua ou pena de morte.

Para os de nível hierárquico inferior, as autoridades sauditas implementaram um programa que tenta mudar seu modo de pensar – uma espécie de reabilitação.

"Há especialistas em psicologia, acadêmicos e religiosos (na equipe de reabilitação), que mantêm encontros privados com alguns desses indivíduos. Reuniram todas as concepções religiosas radicais em que se apoiam os grupos terroristas e refutaram cada uma delas em um manual de cem capítulos."

Os presos perto do fim da pena que consigam convencer as autoridades que se arrependeram passam à fase seguinte do tratamento.

"São transferidos a casas com dormitórios e um jardim central, onde podem jogar jogos e conversar, ir à piscina, à academia. É uma espécie de retiro."

Ali, deixam de ser considerados prisioneiros, e sim pessoas em processo de reabilitação.

"Passam, também, por terapias artísticas. Quando visitei o centro de reabilitação, os responsáveis me contaram que inicialmente os internos desenhavam cenas de crueldade e, depois de alguns meses, passavam a pintar cenas menos cruéis, como flores."

A terapia se baseia na ideia de que desenhar ajuda indivíduos a expressar seus sentimentos.

"A intenção é formar uma atitude positiva na interação interpessoal, para facilitar a reinserção deles quando deixarem o centro."

Na fase final, os internos podem receber visitas de entes queridos, até que finalmente sejam autorizados a voltar a viver em sociedade. Alguns chegam a receber auxílio econômico.

"O processo de desradicalização é muito complexo, mas se você tem uma família, emprego, sem problemas econômicos, é mais difícil que fique sob a influência de ideias radicais", diz Saud.

As autoridades sauditas afirmam que esse ambicioso projeto, em vigor há mais de dez anos, tem tido resultados positivos: de 3 mil participantes, 80% teriam renunciado à violência.

Na Europa

Estima-se que 7 mil cidadãos europeus tenham migrado para se unir ao Estado Islâmico, e que 2 mil tenham regressado à Europa – trazendo dilemas aos governos do continente, pelo temor de que eles passem a promover atentados em cidades europeias.

Magnus Renstorp, da Universidade de Defesa da Suécia, cita um estudo alemão apontando que 75% dos combatentes regressados não demonstraram nenhum interesse em cooperar com as autoridades.

"São pessoas com as quais é muito difícil dialogar", diz ele.

Acredita-se que centenas de combatentes leais ao EI estejam atualmente em território europeu. E, "ao menos que haja provas contra eles, a polícia só pode interrogá-los".

Na Suécia, por exemplo, muitos jihadistas que retornaram do combate desapareceram do radar das forças de segurança.

A França, que concentra o maior número de combatentes regressados, tem endurecido sua abordagem, segundo Renstorp.

"Se há informações de inteligência que afirmam que você fez parte do Estado Islâmico, pode ficar preso por muito tempo (mesmo sem condenação)", diz ele.

Mesmo assim, os processos podem se arrastar por anos, e não há indícios claros quanto a se isso tem prevenido ou não a radicalização.

No Reino Unido, foi aprovado recentemente um programa de reabilitação via artes marciais.

"A tentativa é desmontar o espírito combatentes para reconstruí-lo de um modo mais pacífico", diz o pesquisador sueco. "Há iniciativas muito interessantes."

Mas a questão está longe de ter desfechos simples. Cerca de 25% dos combatentes egressos são mulheres, que muitas vezes voltam para casa com filhos pequenos.

"Estamos falando de centenas ou milhares de crianças traumatizadas que podem se converter em indivíduos perigosos", opina Renstorp, citando o caso de um menino cujo pai morreu combatendo pelo Estado Islâmico.

"Algumas dessas crianças podem sentir uma mágica atração para seguir as pegadas de seus pais."

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