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Lei que prevê multa de R$ 3 mil por assédio na rua divide mulheres e autoridades na França

Projeto está sendo finalizado e prevê aplicação da punição apenas se houver flagrante; feministas e policiais se dizem céticos sobre aplicação.

Em meio a campanhas globais e em Hollywood que denunciam violências sexuais sofridas pelas mulheres, a França quer punir o assédio nas ruas com multas de até R$ 3 mil (750 euros). O projeto de lei está sendo finalizado, mas já provoca controvérsias: associações feministas e até mesmo a polícia se dizem céticas em relação à sua aplicação.

O assédio nas ruas foi batizado de «ultraje sexista e sexual» no texto que deve ser apresentado em um conselho de ministros no final deste mês. Sua definição, porém, «é algo muito complicado» e subjetivo, reconhece a ministra da Igualdade entre Mulheres e Homens, Marlène Schiappa. Afinal, qual o limite entre a simples paquera e o assédio no espaço público? Um grupo de parlamentares, que ouviu associações e especialistas, entregou ao governo na semana passada um estudo sobre essa questão.

Sem listar precisamente os atos considerados como «ultrajes sexistas e sexuais», a futura lei irá punir «comentários e comportamentos que afetam a dignidade da pessoa» em razão do caráter «degradante ou humilhante» ou que criem situações «intimidantes, hostis ou ofensivas».

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Na prática, são palavras e gestos obscenos ou sugestivos, olhares insistentes, o fato de seguir alguém pelas ruas ou no metrô e até mesmo assobios, exemplifica a ministra. A multa será de 90 euros (R$ 360) se o pagamento for feito imediatamente. O valor de R$ 3 mil será cobrado se houver fatores agravantes.

Flagrante policial

O problema é que, para a multa ser aplicada, é preciso que haja um flagrante policial. O governo francês optou por esse sistema para evitar a necessidade de a vítima prestar queixa na delegacia, como ocorre na Bélgica, onde a medida para punir o assédio na rua não teve resultados.

«Já é difícil as mulheres prestarem queixa por estupro. No caso do assédio na rua, mesmo eu, como mulher, não perderia tempo com uma queixa contra alguém que não vai ser localizado», diz Schiappa, ressaltando que para que a lei funcione «é preciso que haja multas em flagrante delito».

O ministro do Interior, Gérard Collomb, assegura que isso será cumprido pela nova «polícia de segurança do cotidiano», lançada em fevereiro e que terá 10 mil policiais até 2022.

As forças de segurança, no entanto, não se mostram tão confiantes em relação à futura lei. «Quem assedia não é inconsciente a ponto de insultar uma mulher na frente de um policial», diz Patrice Ribeiro, do sindicato policial Synergie-Officiers.

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Algumas associações, como a Ouse o Feminismo, temem que atos de agressão ou de assédio sexual percam a qualificação jurídica de delito e sejam punidos de maneira mais branda, com simples multas.

«Há grandes incertezas em relação à aplicação dessa lei e aos meios que serão utilizados para isso. Para dar segurança às mulheres é preciso fazer bem mais do que uma inovação legislativa», diz Raphaëlle Rémy-Leleu, porta-voz do grupo.

Segundo a ativista, já existe um arsenal jurídico na França em relação ao assédio sexista e sexual, inclusive no trabalho. Na grande maioria dos casos, diz ela, os agressores ficam impunes devido à dificuldade das vítimas para provar os fatos.

«Mesmo nos casos de assédio pela internet, onde dispomos de provas escritas, não conseguimos prestar queixa nem fazer com que os agressores sejam punidos», afirma.

Em um manifesto contra a penalização do assédio na rua, um grupo de professores universitários e pesquisadores franceses afirma que a lei visaria homens desfavorecidos, que passam mais tempo na rua, e também não ocidentais, indicando que poderia haver racismo.

Para a ministra da Igualdade entre Mulheres e Homens, quando alguém for multado por ultraje sexista ou sexual, isso servirá de exemplo e terá um valor «pedagógico».

«Isso faz parte do combate cultural que estamos fazendo e deve levar as pessoas a se interrogar sobre seus comportamentos e a redefinir os limites de tolerância da sociedade», afirma Schiappa.

Caso Weinstein

O presidente francês, Emmanuel Macron, havia prometido na campanha eleitoral que a igualdade de gêneros seria uma das grandes causas de seu mandato.

Assim como ocorreu em outras partes do mundo, o tema ganhou mais destaque na França após o escândalo envolvendo o produtor americano Harvey Weinstein, acusado de dezenas de agressões sexuais.

As consultas para o texto que visa punir o assédio na rua foram lançadas pelo governo antes da polêmica causada pelo manifesto assinado por 100 artistas, intelectuais e acadêmicas francesas – entre elas a atriz Catherine Deneuve – defendendo «a liberdade de importunar, indispensável à liberdade sexual.»

Na carta, elas denunciavam o que chamam de novo «puritanismo» que teria surgido no mundo após o caso Weinstein.

«Estupro é crime, mas tentar seduzir alguém, mesmo de forma insistente ou desajeitada, não é – tampouco o cavalheirismo é uma agressão machista.»

Na França, a exemplo do Brasil, os movimentos feministas estão em alta.

A liberação da palavra das mulheres, inicialmente nas redes sociais, com campanhas como «#balancetonporc», algo como «dedure teu porco», resultou em um aumento de 31% nas queixas de crimes sexuais na França no último trimestre de 2017.

Várias personalidades, inclusive um ministro, são investigados por supostos estupros no país.

Segundo Schiappa, o projeto de lei contra as violências sexuais e sexistas deverá ser votado pelo parlamento até junho.

Além do assédio na rua, ele prevê medidas como a ampliação do prazo de prescrição de crimes de estupro sofridos por menores e a fixação de uma idade mínima para que uma relação sexual possa ser considerada consentida.

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