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As lições que a decadência da cidade de Troia pode dar à economia do século 21

O que a narrativa de Homero sobre essa civilização da Idade do Bronze pode ensinar sobre nosso próprio século 21 e o mundo interconectado em que vivemos.

O enredo da decadência e queda da cidade de Troia nas mãos de um vingativo exército grego vem sendo contado há pelo menos três mil anos – ainda assim, essa é uma história que fala sobre um colapso global muito maior, com lições úteis inclusive para este século 21.

Em 1.300 a.C., no auge da Idade do Bronze, as grandes potências do Egito, do povo hitita (na área que corresponde hoje à região central da Turquia), os gregos, os babilônios e diversas cidades do Oriente Médio pareciam impenetráveis para qualquer um dos mercadores que navegassem pelo Mediterrâneo, uma rota de comércio importante da época.

O mesmo valia para a cidade murada de Troia, na costa da atual Turquia, na ponta do estreito de Dardanelos. Navios que tinham como destino o Mar Negro e o Mar de Mármara com frequência eram forçados a esperar nos portos troianos até que as condições do vento permitissem seguir viagem – localização privilegiada da qual a cidade tirava proveito, cobrando pelo deslocamento das embarcações pelo canal.

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Apenas cem anos depois, no entanto, por volta de 1.170 a.C., quase todas essas civilizações haviam entrado em colapso. Na era sombria que se iniciou naquele período, até a arte da escrita se perdeu.

Na mitologia grega, a história da queda de Troia foi contada em duas narrativas épicas – a Ilíada e a Odisséia -, tradicionalmente atribuídas ao poeta Homero, que as teria escrito 400 anos depois dos acontecimentos.

"Ele não estava escrevendo História, mas é evidente que Troia era um lugar fortificado e importante", diz J. Lesley Fitton, encarregado do departamento de Grécia e Roma no Museu Britânico, em Londres.

Mundo conectado

A Idade do Bronze é caracterizada pela presença de grandes Estados que interagiam entre si e eram parcialmente dependentes uns dos outros – organização similar à do mundo atual, marcado por economias interligadas pelos mercados financeiros, cadeias globais de valor e processos de produção orientados pela demanda, conhecidos como "just in time".

A commodity-chave desse período foi o bronze, uma liga metálica formada por cobre e estanho que se tornaria extremamente importante para as civilizações que queriam construir grandes exércitos.

O cobre vinha da ilha mediterrânea de Chipre, mas o estanho viajava 4 mil km do Afeganistão, transportado por terra através da Síria e depois por navios ao longo da costa – e era tão valioso quanto o petróleo é hoje.

Carol Bell, da Universidade College London, afirma que obter estanho suficiente para produzir armas à base de cobre dominava o pensamento de governantes da época "da mesma forma que o fornecimento de gasolina a preços acessíveis para os americanos que dirigem SUVs (veículos utilitários esportivos) ocupa a mente do presidente dos Estados Unidos hoje".

Vulnerabilidade comercial

Mesmo no século 21, estamos vulneráveis a interrupções na corrente global de comércio.

Em 2012, os preços internacionais de petróleo tiveram um pico quando o Irã ameaçou fechar o estreito de Hormuz, através do qual 20% do fornecimento global da commodity transita. O Irã afirmou na ocasião que a medida causaria um choque nos mercados com o qual "nenhum país" conseguiria lidar.

No ano passado, um relatório do think tank (centro de pesquisas e debates) Chatman House advertiu os governos de que era preciso tomar medidas mais eficientes para proteger "pontos de estrangulamento" das rotas comerciais. O documento afirmava que os Estreitos Turcos – Bósforo e Dardanelos – eram "particulamente críticos para o trigo, já que um quinto das exportações globais do produto passam por eles todos os anos".

"Uma ou mais interrupções desses pontos de estrangulamento poderiam levar a uma queda na oferta e aumentos súbitos de preços, com consequências sistêmicas que poderiam ir além do mercado de alimentos", acrescenta.

Na Idade do Bronze, não era preciso muito para que o caos econômico fosse instaurado. "Pequenas e esparsas interrupções ou problemas ambientais", exemplifica Andrew Shapland, curador de Idade do Bronze grega no Museu Britânico.

Mudanças climáticas

Assim como agora, as mudanças climáticas eram fatores-chave naquela época. "Sabemos que elas eram responsáveis por períodos de fome", afirma Eric Cline, professor de arqueologia na Universidade George Washington, em Washington.

De fato, análises polínicas e de isótopos de oxigênio mostram que o período foi marcado por 300 anos de longas secas. As temperaturas no Mediterrâneo caíram de forma expressiva, reduzindo os níveis pluviométricos e, por consequência, afetando as lavouras.

As civilizações da Idade do Bronze sofreram o impacto de uma série de eventos. Não apenas secas prolongadas e fome, mas diversas erupções vulcânicas, terremotos, instabilidade social, migrações de refugiados, interrupções no comércio e guerras.

"Se só uma coisa acontece, você consegue sobreviver. A diferença no fim da Idade do Bronze foi o que chamamos de ‘tempestade perfeita’. Com um, dois, três ou quatro eventos você está diante de efeitos multiplicadores – não se consegue sobreviver", ressalta o professor Cline.

Nosso mundo hoje pode ser mais resiliente, mas mesmo atualmente os terremotos têm força para gerar caos econômico. Quando o Japão foi atingido em 2011 pelo terremoto e tsunami que destruíram Fukushima, o impacto econômico do desastre se fez sentir em praticamente todo o continente asiático.

Múltiplos impactos

Por volta de 1.250 a.C., os problemas se acumulavam. Uma rainha hitita chegou a pedir ajuda ao Egito, argumentando que não tinha "qualquer grão" em suas terras. Um mercador sírio suplicou: "há fome em nossas casas, se vocês não chegarem rapidamente, nós todos morreremos".

Para ajudar a aliviar a situação, os egípcios começaram a enviar remessas de alimentos para os vizinhos.

Mesmo nesse período, os governos tinham interesse em promover programas de ajuda internacional. Um faraó vangloriou-se por ter transportado grãos em navios "para manter viva a terra dos hititas".

A cooperação internacional, contudo, não foi suficiente.

Se a população que vivia no entorno dos palácios se voltou contra seus governantes porque não tinham acesso a comida ou porque não encontravam emprego é algo que ainda não está claro. Mas o fracasso das colheitas – e da economia – catalisou uma onda de guerras civis e de migrações em massa de refugiados.


Homero: verdade ou ficção?

Na narrativa de Homero, o romance entre o príncipe troiano Paris e a rainha dos gregos, Helena, é o pivô da guerra lendária entre os dois povos.

De fato, registros contemporâneos das terras vizinhas, à época habitadas pelos hititas, confirmam que a Grécia protagonizou "algumas campanhas militares na costa oeste na Anatólia (península que compreende parte da atual Turquia)", diz Spyros Bakas, da Koryvantes Association for Historical Studies, organização cultural dedicada a pesquisar a herança militar helênica da Idade do Bronze até o período Bizantino.

Os documentos relatam inclusive uma ocasião em que um governante grego "conduzia 100 carruagens e uma infantaria contra um príncipe hitita".

Os dois povos – os gregos e os hititas – certamente entraram em conflito por causa de Troia, que tinha língua e religião próprias, mas que chegou a ser aliada dos hititas. Em determinado momento, a família real de Troia foi deposta – e há, nesse sentido, uma carta dos hititas a um rei da Grécia sobre um acordo de paz em relação a Troia.

Nada disso prova a precisão da história contada por Homero, mas "Troia era claramente um lugar com capacidade para acumular grande riqueza, logo, sempre atrairia a atenção de saqueadores", destaca J Lesley Fitton.


Saqueamento de cidades

Historiadores afirmam que Troia foi seguramente saqueada por volta de 1.200 a.C., apesar de não haver indícios em documentos da região ou mesmo na Grécia (os registros gregos se resumiam a listas administrativas) para esclarecer o que aconteceu. Na região da atual Síria, contudo, é possível encontrar as vozes das vítimas de uma catástrofe ainda maior.

O governante de Ugarit, pego no contrapé por eventos inesperados, pediu ajuda dizendo: "Todas as minhas tropas e carruagens estão nas terras dos hititas e todos os meus navios, na terra dos lícios. Assim, a cidade está abandonada a si mesma".

Seu apelo parece ter ecoado no vazio; talvez seus vizinhos também estivessem passando por momentos difíceis. Se algum auxílio chegou, veio tarde demais, de acordo com um dos últimos documentos encontrados em Ugarit.

"Quando sua mensagem chegou, o exército havia sido subjugado e a cidade, saqueada. A comida que estava sobre a eira (espaço onde os cereais eram debulhados e limpos) foi queimada e os vinhedos foram destruídos."

"Nossa cidade foi saqueada. Que vocês saibam! Que vocês saibam!"

Aqueles que sobreviveram provavelmente foram vendidos como escravos ou engrossaram as fileiras de refugiados e de foras da lei que cresciam à medida que as civilizações da época entravam em decadência.

Culpando imigrantes

Os egípcios tinham uma resposta simples para o colapso de Estados durante a Idade do Bronze: a culpa era dos mais variados grupos que povovam as margens do Mediterrâneo, a quem eles chamavam de "povos do mar".

"Os povos estrangeiros fizeram uma conspiração. De uma vez só, as terras foram separadas e espalhadas durante o combate. Nenhuma região resistia diante de suas armas", diz uma inscrição egípcia.

O Egito parece ter tido tempo, contudo, de se defender, e seu exército conseguiu derrotar os "povos do mar", diz o professor Cline, que cita a frase atribuída ao faraó Ramsés 3º: "Derrubei aqueles que nos invadiram… Ficaram como aqueles que não existem".

Andrew Shapland adverte que é preciso ter cuidado para interpretar as declarações de líderes dessa época: "Ramsés estava fazendo dos imigrantes os agressores".

"E se ele estivesse agindo como qualquer político conservador hoje em dia – buscando algum fator externo e culpando-o pelos problemas econômicos?"

Vitória de Pirro

Se os gregos realmente derrotaram os troianos, a sensação de vitória durou pouco. Muitos de seus palácios foram pouco tempo depois destruídos ou abandonados; os hititas, as cidades-estado sírias, os assírios e os babilônios também entraram em declínio. Apenas o Egito sobreviveu.

Diferentemente dos líderes da Idade do Bronze, que poderiam apenas rezar para o deus da tempestade para lhe pedir chuva se as colheitas fracassassem, nós estamos hoje muito mais conscientes dos problemas globais e temos muito mais recursos técnicos para lidar com eles, diz o professor Cline.

Mas a obra de Homero é uma história exemplar, ele argumenta.

"Toda civilização do mundo acabou por desmoronar. Seria de uma autoconfiança excessiva achar que a nossa é a única civilização que irá sobreviver."

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