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Travestis e transgêneros encontram obstáculos para entrar e permanecer no ensino superior

Visibilidade ainda é rara para parte da comunidade LGBT; no sistema de ensino, a ausência de apoio e oportunidade é ainda mais escancarada

Para saber antes de ler: São consideradas transgêneros aqueles cujo sexo que lhes foi definido ao nascer não corresponde a seu entendimento sobre seu próprio corpo e identidade; enquanto travestis são pessoas que podem não se identificarem como mulheres, mas adotam aparências e expressões consideradas femininas.
não-binários não acreditam que sua existência se encaixa nos estereótipos de “homem” ou “mulher”.  Por fim, pessoas cis são aquelas que se identificam com o gênero que lhes foi designado ao nascer.


Pessoas transgênero, travestis e não-binárias existem há tanto tempo quanto lésbicas, gays e bissexuais. Sua existência, porém, continua incompreendida para muitos. E um dos principais fatores para isso é a ausência involuntária dessa comunidade em espaços cotidianos, como no mercado de trabalho e no sistema de ensino.

No ensino superior, por exemplo, aqueles que se identificam como transgênero representam apenas 0,2% do total de estudantes em universidades federais, segundo levantamento da Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições de Ensino Superior) de 2018. Outros 0,6% dos participantes identificaram-se como não-binários.

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Outro estudo, do projeto cultural Afroreggae, estimou em 2014 que cerca de 0,02% do total de transgêneros e travestis do Brasil estavam em uma universidade. Dois anos depois, o recém-graduado Guilherme Abreu, hoje com 26 anos, entrou para este grupo.

Ele é o primeiro trans a se formar na Faculdade Belas Artes, na zona sul de São Paulo, como bacharel em Publicidade e Propaganda. Quando entrou na instituição, em 2016, seu registro ainda carregava outro nome.

“No primeiro dia de aula, eu expliquei para os professores que ainda não registrei meu nome social [escolhido durante a transição], mas sou um cara transgênero e meu nome é Guilherme”, conta. “A maioria dos professores concordava. Teve professor que falou não, vou te chamar de acordo com o que está na chamada.”

Abreu conta que, mesmo encontrando um corpo de alunos bastante diverso entre seus colegas, ainda não escapou do preconceito. Quando chamado em aula por seu antigo nome, que já não lhe representava mais, ele permanecia quieto, enquanto amigos lidavam para corrigir o professor. Apenas então, o estudante respondia: “Guilherme, presente”.

O jovem publicitário também foi o primeiro atleta transgênero a jogar no JUCA (Jogos Universitários de Comunicação e Artes), campeonato que reúne oito instituições de ensino superior, atuando na modalidade handebol masculino.

«Eu era a única pessoa trans da classe, na época. Na faculdade, tinha mais um outro menino. Hoje, somos em cinco ou seis», relata. O ineditismo que acompanhou a vivência de Guilherme expõe a ausência desta comunidade no ensino superior – ausência que é naturalizada por pessoas não-trans.

Portas abertas?

“Quando na sua vida você ouviu alguém questionar que não tem pessoas trans em um espaço?”, questiona Fê Felício, travesti, DJ e também formada em Publicidade e Propaganda pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), na zona oeste da capital paulista.

Fê é enfática sobre identificar-se como travesti: “Não me confunda com uma mulher, não ache que eu quero parecer uma mulher. Eu quero parecer a Fê”. Para ela, pautas e reivindicações deste grupo não são discutidas em espaços acadêmicos porque, simplesmente, travestis não são aceitas ali.

As dificuldades no ensino superior já começam em seu ingresso. Algumas instituições, como a Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e a Unilab (Universidade da Lusofonia Afro-Brasileira) apresentam cotas destinadas para esta comunidade, com vestibulares específicos e apoio financeiro.

Uma vez matriculados, transgêneros encaram uma rotina de preconceitos bastante próxima a de outros espaços da sociedade. “As pessoas não têm convivência com trans, não têm quem olhar e empatizar”, relata Fê. “Não temos o direito de acessar esse espaço. Para nós, existir é um privilégio”.

Não é exagero: estudos da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil) indicam que a expectativa de vida de pessoas trans seja menos da metade da média nacional: apenas 35 anos. Para a associação, a falta de acesso ao sistema educacional, os crimes de ódio e as fontes precárias de renda, como a prostituição, conspiram para roubar anos de vida daqueles que não se identificam com o gênero que lhes foi imposto.

O processo de exclusão começa cedo. No ensino fundamental e médio, o preconceito contribui para a evasão escolar de alunos com diferentes expressões de gênero e orientações sexuais. Um esforço para quantificar tais experiências foi feito pela ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis) em 2016, com resultados desanimadores.

Dos estudantes entrevistados, todos acima de 13 anos e distribuídos por diversas instituições em todo o país, 68% foram agredidos verbalmente na escola por sua identidade de gênero, com 25% sofrendo violência física pelo mesmo motivo. Os que vivenciaram com mais frequência tais episódios tinham quase o dobro da probabilidade de faltar às aulas, sendo também mais propensos a níveis elevados de depressão.

Aqueles que escapam das estatísticas de evasão e conseguem chegar ao ensino superior ainda estão sujeitos a experiências negativas. O levantamento de 2018 feito pela ABGLT feito sobre universitários em instituições federais mostra que, dos estudantes transexuais e transgêneros, mais de 20,8% contam ter sofrido assédio moral, porcentagem que sobe para 26,8% para estudantes não-binários. Ambos os números superam aqueles revelados por mulheres e homens cisgênero – que se identificam com o sexo atribuído no nascimento.

Fê Felício relembra que, apesar de considerar sua experiência na faculdade bastante privilegiada, ainda enfrentava micro-agressões rotineiras. “Nunca sofri uma agressão física, mas tenho certeza que só não sofri porque tinha gente suficiente pra me proteger.”

Comunidade universitária

“A faculdade rendeu muitas coisas boas na minha vida, e é uma experiência que eu sempre tive vontade de passar”, relembra Guilherme sobre os anos na Belas Artes. “Você consegue ir andando pelos cantos e achando pessoas que te acolhem e te mostram que você pode se sentir bem ali”.

Tanto ele como Fê precisaram criar estratégias para reafirmar seu lugar no meio acadêmico. Eles apoiaram-se em sua personalidade naturalmente proativa e, expondo-se, conseguiram lugares de destaque em entidades universitárias regidas por alunos, além de marcar presença em eventos como campeonatos e festas.

“Eu tive sorte de sempre ser muito política, de levantar a voz e fazer parte das coisas”, diz a DJ, que, após sua formatura, criou um canal no Instagram para divulgar seus sets de discotecagem, mostrar looks de maquiagem e ensinar conceitos básicos sobre a luta trans. “Mas e quem não consegue ser assim? E quem não tem a saúde mental para passar por tudo aquilo?”

A permanência de pessoas trans no espaço universitário, mais do que apoio logístico e financeiro, também requer redes de apoio emocional e psicológico. Estes podem partir dos alunos, como frequentemente ocorre; mas também ser incentivadas pelas próprias diretorias das instituições.

A ABGLT, por exemplo, sugere a criação de canais para que estudantes LGBT+ possam denunciar discriminação e violência, além da inclusão de conteúdos sobre diversidade sexual e direitos humanos na formação dos professores e também dos alunos. Fê e Guilherme vão além:

“Deveria ter uma conversa mais aberta. Uma vez por semestre, uma vez a cada dois meses, fazer um bate-papo com a galera, quebrar um pouco desse preconceito. Por exemplo, todo lugar tem racismo. Então vamos falar sobre racismo, sobre comunidade, sobre periferia”, sugere Guilherme. “Levem os professores para escutarem esses alunos. Faz o coordenador ver essa conversa. Porque daí você começa a ajudar muito.”

“As atléticas e outras entidades precisam colocar pessoas trans para lhes representarem em cargos, nas equipes de apoio e segurança das festas. Dar destaque para sentirem que têm espaço e de fato ocupam esses meios. É dar visibilidade”, complementa Felício. “Não somos objetos de estudo. É preciso termos não trabalhos sobre pessoas trans, mas trabalhos de conclusão de curso entregues por pessoas trans. Eu não sou objeto de estudo, sou parte de uma comunidade que quer se formar.”

Quero ajudar

No Brasil, existem diversas entidades, coletivos e organizações não-governamentais (ONGs) que proporcionam a pessoas da comunidade LGBT acesso a moradias seguras, cursos profissionalizantes, assistência psicológica e outros direitos básicos. Conheça algumas delas e saiba como ajudar a causa:

Casa 1
Fornecendo acolhimento para jovens LGBT desabrigados, a Casa 1 fica no centro de São Paulo e mantém um financiamento coletivo para continuar suas operações.

A entidade ainda distribui roupas e produtos de higiene para a população em situação de rua e proporciona cursos diversos e atendimentos psicoterápicos de baixo custo. Contribua ao financiamento do projeto no site Benfeitoria.

Mães pela Diversidade
A ONG nacional nasceu em São Paulo a partir de um grupo de mães com filhos na comunidade LGBT. O grupo promove palestras, debates, cursos e atividades diversas para fomentar o respeito à diversidade sexual, de gênero, cultural e racial.

«A missão das Mães pela Diversidade é tirar famílias da população LGBTQI+ do “armário”, para que, juntos, possamos gritar mais forte contra o bullying, a opressão, a segregação e a discriminação», diz o manifesto do grupo. Colabore ou filie-se no site oficial.

Transvest
A organização de Belo Horizonte descreve-se como um projeto artístico-pedagógico,  e fornece oficinas, eventos culturais e aulas preparatórias para o Exame Nacional do Ensino Médio e o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos.

A entidade aceita contribuiçõess mensais, e descreve em sua página de financiamento coletivo cada ponto de seu orçamento, objetos que podem ser doados e metas de arrecadação para o mês. Contribua no Evoé.

Casa Nem
Localizada no Rio de Janeiro, a casa fornece abrigo e apoio a pessoas LGBT em situação de vulnerabilidade. Também organiza oficinas, debates, shows e festas, mas também cursos específicos de gastronomia, cultura e preparatório para o Enem.

O projeto aceita contribuições mensais e pontuais, que ajudam a manter a infraestrutura, higiene e administração do prédio, e também na alimentação dos cerca de oitenta atendidos. Contribua no Evoé.


*Com supervisão de Luccas Balacci.

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