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No dia da mulher, as histórias das que lutam nas calçadas de São Paulo

Eram 9 horas de uma manhã nublada no centro de São Paulo. Clima comum na capital, para o azar de Bruna, que tentava secar suas roupas, cobertores e pertences pessoais na praça da Sé. «Os caras da Prefeitura molharam minhas coisas. Olha aí, tudo molhado». 

Bruna tem 23 anos, 14 deles vividos nas calçadas. Ao lado do namorado e grávida de 5 meses, ela reclama do tratamento dos guardas municipais. «Eram duas horas da manhã e os caras da prefeitura chegaram aqui jogando água na gente. Se a gente não sair, se ferra por causa da polícia. Eles querem que a gente fique em qualquer lugar, menos perto deles», afirma. 

O número de pessoas em situação de rua na cidade aumentou 53% de 2015 para 2019, de acordo com a Prefeitura. São 24.344 vivendo nas calçadas e albergues da capital. As mulheres são minoria nesta estatística, apenas 15%. No entanto, são as maiores vítimas de violência.

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Segundo levantamento do Ministério da Saúde, de 2015 a 2017, o Brasil registrou mais de 17 mil casos de violência contra pessoas em situação de rua. Desses, 50,8% das vítimas foram mulheres e 49,2% homens. Ao menos 54% se declara negra. 

«Eles pensam que muitas mulheres são sexo fraco, que só porque é mulher vai ficar quieta e não vai argumentar, mas não é assim não», defende Bruna. «Cada uma aqui tem sua dificuldade. Só porque eles têm um saco no meio das pernas, acham que são melhores que a gente.»

De todas as dificuldades de se viver na rua, Bruna diz que a discriminação é a pior. Além da Prefeitura, ela também reclama do tratamento dado pelos funcionários do SUS (Sistema Único de Saúde). «Consigo fazer tudo pelo SUS, principalmente por a minha gravidez ser de risco. Mas o tratamento é sempre uma bosta, a ignorância é a mesma. Eles me tratam diferente por eu ser moradora de rua, o jeito de falar, o tom de voz», conta.

A busca por emprego nas ruas

Kelly, de 43 anos, dorme na rua para poder ter uma casa. De tempos em tempos, ela deixa o conforto do lar em Itaquaquecetuba, a 42 quilômetros da capital, e monta uma barraca na praça da Sé, onde «mora» por alguns dias com o marido e a filha de 3 anos. 

«Eu venho pra cá pra poder trabalhar, para levantar o dinheiro das contas e do aluguel, depois eu vou embora de novo. O hotel que a gente ficava não aceita mais criança e albergue não tem como ficar», conta. 

A dificuldade bateu na porta quando a ocupação em que morava, no centro de São Paulo, foi alvo de uma reintegração de posse. «Saí só com a roupa do corpo», afirma. Kelly relata que nunca mais conseguiu recuperar suas coisas. Entrou na Justiça para conseguir de volta os móveis do apartamento, mas não devolveram. Com isso, foi para Itaquaquecetuba, mas sonha em voltar a morar na capital e abrir uma bomboniere. 

«Meu marido é analfabeto. Se já é difícil arrumar emprego com estudo, imagina sem? E eu tenho passagem no presídio, então não consigo arrumar serviço, já saí há muito tempo e mesmo assim é difícil», conta. «Mas eu me viro, venho pra cá e vendo Natura, Avon. Ele vende bebida e cigarro pra gente se manter, pagar aluguel e as fraldas da neném.» 

Kelly concorda com Bruna: sendo mulher na rua, a maior dificuldade é a discriminação, mas o acesso aos banheiros também é um problema. «Pra gente que é mulher, aqui é muito difícil, principalmente pra ir no banheiro. Tinha que ter aqui na rua. Quando fecha o metrô, não tem mais. Eu mesma pego um baldinho e tenho que jogar nos ralos depois», afirma. 

Ela conta que a única opção para tomar banho é o «chá do padre», núcleo de convivência mantido pela igreja ao lado da Faculdade de Direito do largo São Francisco. A fila de espera dura cerca de duas horas. «Eles oferecem um banho por dia para a população de rua. Mas é muita gente e muita humilhação. E mulher menstrua, né? É horrível. Pra minha filha eu faço uma cabaninha e dou banho nela», relata. 

 

Procurada pela reportagem, a Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social, informou que dispõe de 10 serviços específicos para mulheres em situação de rua, sendo oito CAE (Centros de Acolhida Especiais), dois deles para mulheres transexuais, totalizando 706 vagas.

«A região central possui um CAE para mulheres localizado no distrito da Bela Vista, com 140 vagas. Além disso, há também o Centro de Acolhida para gestantes, mães e bebês, com 50 vagas para casos de vulnerabilidade. Todos os serviços contam com banheiros e elas podem tomar banho», diz a Secretaria em nota. 

A pasta também disponibiliza centros de convivência, onde são oferecidas refeições, oficinas, atividade, kits de higiene, banho e banheiro. Três deles são próximos a praça da Sé. No entanto, só funcionam durante o dia. 

Além de perder todos os pertences e o emprego, Kelly também afirma que teve o Bolsa-Família cortado por já receber uma pensão. «A pensão é minha, eu usava para ajudar a pagar o aluguel, mas o Bolsa-Família era da minha filha e cortaram. Tanto rico, político passando na televisão e ganhando um monte, e eles cortando do meu», diz. 

Dentro das estatísticas

«Aqui eu tô há um ano, sou de Curitiba. Lá eu também estava na rua há uns 4 ou 5 anos. Vim acompanhada do meu marido, mas faz mais de 1 mês que não sei onde ele está». Sozinha e sem ter para onde ir, Edineuza, de 45 anos, agora pretende voltar para sua terra natal. 

«To tirando os documentos e pretendo voltar para o Paraná, ver meus filhos. Mesmo estando brigados é uma referência né, se acontecer alguma coisa comigo, eles estão lá», afirma. 

Edineuza começou a viver nas calçadas depois de um desentendimento familiar. Ela conta que cursou um ano de jornalismo na UFPR (Universidade Federal do Paraná), mas abandonou e foi ser cozinheira. Depois disso, começou a trabalhar como entrevistadora no Ibope (Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística). 

«Depois do desentendimento com meus filhos, família, falência, acabei não dando conta do meu trabalho e fui mandada embora. Tudo isso foi acumulando, não tive mais condições de manter meu custo de vida e acabei vindo parar na rua», relata. 

Para Edineuza, a discriminação e o machismo vem de todos os lados, às vezes até das próprias pessoas em situação de rua. «Ser mulher na rua é mais difícil em todas as partes. Para tomar banho por exemplo. Mesmo tendo albergues, é sempre longe, alguns os banheiros são mistos. Também é muito ruim dormir sozinha, dá medo. Por fim, você tem tirar força de onde você não tem», afirma. «Eu trabalhava com estatística. Hoje, faço parte das estatísticas». 

 

Outro lado

A Prefeitura de São Paulo, por meio da subprefeitura da Sé, informou “desconhece a atitude apontada pela reportagem e ressalta que as equipes seguem os procedimentos do decreto Nº 57.581, de 20 de janeiro de 2017,  e são orientadas a respeitar as pessoas em situação de rua e seus bens.”

Disse ainda que,  de acordo com o § 1º, “é vedada a subtração, inutilização, destruição ou a apreensão dos pertences da população em situação de rua, em especial de bens pessoais, tais como documentos de qualquer natureza, cartões bancários, sacolas, medicamentos e receitas médicas, livros, malas, mochilas, roupas, sapatos e outros.”

A subprefeitura afirmou, no entanto, que “podem ser recolhidos objetos que caracterizem estabelecimento permanente em local público, principalmente quando impedirem a livre circulação de pedestres e veículos, tais como camas, sofás e barracas montadas ou outros bens duráveis que não se caracterizem como de uso pessoal.”

 

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