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Adoção na Passarela: ‘Relação que começa por apelo estético é muito frágil’, alerta psicólogo

«Estratégia de sedução.» Assim o psicólogo Bruno Motta descreve o evento «Adoção na Passarela», que acumula críticas desde o início da semana. Expor crianças produzidas, maquiadas, com roupas bonitas em um desfile — sem levar em conta sua identidade, história de vida e individualidade — é uma tentativa perigosa de despertar o interesse de famílias de querem adotar.

Meninos e meninas de 4 a 17 anos aptos para adoção participaram de um desfile em Cuiabá, no Mato Grosso, na última terça-feira (21). O evento foi organizado pela Ampara (Associação Mato-grossense de Pesquisa e Apoio à Adoção), em parceria com a CIJ (Comissão de Infância e Juventude) da OAB-MT (Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Mato Grosso) e buscava apresentar os participantes às possíveis futuras famílias.

O que os organizadores não previram foi a repercussão negativa que o evento teve nas redes sociais. «Os futuros pais e mães escolhem a criança mais bonita? Com os dentes mais perfeitos? Que merda é essa?», criticou uma internauta pelo Twitter. «Isso é errado em tantos níveis. A exposição, a objetificação das crianças. É mercadoria, não seres humanos. Não é possível que achem isso razoável», comentou outra.

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Na página do Pantanal Shopping, onde foi realizado o evento, no Facebook, internautas também manifestaram sua revolta. «Vergonha… Deixo meu repúdio aos organizadores e todos que apoiaram a feira de crianças [sic]».

Fragilidade dos laços

No entendimento de Motta, também colaborador da comissões de Políticas Públicas e Ética do CRP-SP (Conselho Regional de Psicologia de São Paulo), uma relação que começa de forma apelativa é um projeto muito frágil.

«Essas crianças vão emergir na família com suas questões, suas histórias, seus limites. Amor e acolhimento são uma construção cotidiana que envolvem tempo, trabalho, afeto. E aí, me parece que num desfile a gente está fazendo um apelo para essas famílias adotarem por uma questão estética, corporal, superficial, pouco provável de se sustentar ao longo do tempo. Não é impossível, mas é um risco que elas não precisam correr«, explica.

“A gente não tem que maquiar as crianças ou vesti-las com roupas da moda para que sejam aceitas, sobretudo em um shopping, que remete a um lugar de consumo, de produtos.” — Bruno Motta, psicólogo.

Felicidade do outro em primeiro lugar

Segundo o Cadastro Nacional de Adoção, há quase 10 mil crianças aptas a serem adotadas no Brasil. Os dados no país e no mundo ainda apontam a preferência das famílias por bebês e crianças com menos idade, demonstrando resistência à adoção tardia.

Motta ressalta a importância dos pretendentes à adoção serem a família que aquela criança precisa antes mesmo de pensarem em realizar o sonho de ter um filho. «A adoção não está a serviço da satisfação de um desejo, mas para garantir o direito das crianças a convivência familiar e comunitária. Esse sentimento é importante e fundamental para que a adoção dê certo, mas não basta apenas a satisfação de uma demanda particular.»

E não são só as famílias que devem repensar suas atitudes. Para o psicólogo, o Estado deveria ser mais cuidadoso e investir em políticas públicas que atendam famílias de maior vulnerabilidade, uma vez que a maioria das crianças disponíveis para adoção é negra e vem de famílias pobres que não têm acesso a direitos fundamentais.

Diante das críticas…

A OAB-MT e a Ampara resolveram se posicionar por meio de uma nota de esclarecimento (Veja a íntegra aqui). De acordo com o órgão, «o desfile foi apenas uma das ações da ‘Semana da Adoção'», que contou também com «palestras, seminários e recreação para as crianças», e «nunca foi objetivo do evento apresentar as crianças e adolescentes para a concretização da adoção».

As organizações, entretanto, se contradizem ao pontuar que dois adolescentes, cujo perfil estava «fora dos parâmetros de preferência da fila de interessados», foram adotados na edição anterior do evento, em 2016.

Em texto publicado no próprio site da OAB-MT antes da realização do evento, a presidente da CIJ, Tatiane de Barros Ramalho, diz tratar-se de «uma noite para os pretendentes a adotar poderem conhecer as crianças e os adolescentes», para a população em geral ter mais informações sobre adoção e «os menores em si terão um dia diferenciado, em que irão se produzir, fazer cabelo, maquiagem e usar roupa para o desfile».

Dados do Cadastro Nacional de Adoção indicam que há quase 46 mil pessoas interessadas em adotar e 9.524 crianças e adolescentes aptos a serem adotados. Porém, cerca de 47 mil crianças e adolescentes ainda estão com situação indefinida e inseridas em programas de acolhimento institucional.

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