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O que une os famosos discursos de Luther King, Robert Kennedy e Obama

Dois dos retóricos mais importantes do século 20 foram assassinados há 50 anos, mas suas palavras ecoam até hoje.

Livros que reúnem grandes discursos celebram o domínio da arte da persuasão. São volumes repletos de floreios retóricos, de apelos comoventes a ideais universais, com cadências elevadas e promessas fáceis.

Porém, dois dos retóricos mais importantes do século 20 – ambos assassinados há 50 anos – protagonizaram discursos impregnados de dúvidas, de caráter autorreflexivo e questionador, que expressavam uma vulnerabilidade íntima.

Martin Luther King, principal liderança do movimento pelos direitos civis nos EUA, foi morto em 4 de abril de 1968. No mesmo dia, o então senador Robert F. Kennedy desembarcava no Estado de Indiana, onde faria campanha para ser nomeado candidato a presidente pelo Partido Democrata.

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Ao tomar conhecimento do crime, ele mudou a agenda e proferiu um extraordinário discurso improvisado, inspirado em um baque pessoal – o assassinato do irmão mais velho, o presidente John F. Kennedy, cinco anos antes – e em autores clássicos que ajudaram a moldar sua visão de mundo.

«Meu poeta favorito é Ésquilo», disse Kennedy à plateia, antes de citar um trecho de Agamemnon, tragédia grega de autoria do dramaturgo, traduzida pela historiadora Edith Hamilton em 1930:

«Em nosso sono,a dor que não se pode esquecer cai gota a gota no coração até que, em nosso desespero, contra nossa vontade,a sabedoria vem a nós pela sublime graça de Deus.»

Kennedy cometeu, na verdade, um ligeiro equívoco ao fazer a citação, substituindo «despeito» (despite, em inglês) por «desespero» (despair). Na gravação, em meio aos soluços na multidão, você pode observar que ele faz uma pausa em ‘des’, como se não tivesse certeza da segunda sílaba. Como Christopher S. Morrissey escreveu, é difícil saber «se ele citou erroneamente deliberadamente, fortuitamente ou infelizmente».

Mas o fato é que suas palavras moderadas tiveram um efeito poderoso. O público em Indianápolis se dispersou em silêncio, diferentemente do que aconteceu em outras 110 cidades dos EUA em que houve tumulto após o anúncio da morte do ativista negro.

Na manhã seguinte ao assassinato de Luther King, Kennedy falou em Cleveland, no Estado de Ohio, sobre «a ameaça insensata da violência». Ele condenou não só a violência das balas e das bombas, mas «a violência das instituições; a indiferença, a inação e a lenta decadência», assim como a alienação que nos leva a «olhar para nossos irmãos como alienígenas: homens com os quais compartilhamos uma cidade, mas não uma comunidade; homens ligados a nós por uma moradia em comum, mas não por um esforço comum «.

Luther King pregava sobre estarmos «entrelaçados em um único tecido do destino». E Kennedy estendeu a metáfora: «Sempre que rasgamos o tecido da vida que outro homem de forma dolorosa e desajeitada teceu para si próprio e para seus filhos, toda a nação é degradada».

É difícil não se surpreender com a candura presente em «dolorosa e desajeitada». Essas palavras expressam nossas tentativas desastradas e imperfeitas de criar uma vida significativa, assim como nossa vulnerabilidade, cujo reconhecimento não é uma fraqueza, mas uma fonte de força. O restante do discurso de Kennedy foi caracterizado por essa sensibilidade aguçada:

«Mas talvez podemos nos lembrar – mesmo que só por um tempo – que aqueles que vivem conosco são nossos irmãos; que compartilham conosco o mesmo curto período de vida; que buscam – como nós – nada mais a não ser a chance de viver suas vidas com propósito e felicidade, com toda a satisfação e realização que puderem ter.»

«Certamente, esta ligação de uma fé comum, esta ligação de um objetivo comum pode começar a nos ensinar algo. Certamente, podemos aprender, no mínimo, a olhar para aqueles ao nosso lado como companheiros. E certamente podemos começar a trabalhar mais para curar as feridas entre nós e nos tornarmos, em nossos próprios corações, irmãos e compatriotas novamente», acrescentou.

‘Amor difícil’

Os apelos à empatia universal geralmente são apresentados sem complexidade, mas Kennedy oferece uma ressalva em sua fala: «mesmo que só por um tempo». Há uma honestidade sedutora nessa sugestão: devemos amar nossos companheiros cidadãos perpetuamente, mas esse compromisso emocional é uma tarefa significativa. Não é fácil honrar nosso elo comum todos os dias («mas talvez podemos nos lembrar») ou não cair nas temíveis representações do «outro», a quem somos encorajados a desconfiar.

Luther King trabalhou para criar o que ele chamava de «comunidade amada» e escreveu extensivamente sobre o ágape, a noção grega de «amor sem interesse». Não se trata do sentimento correspondido, mas do amor «pelo inimigo-vizinho de quem você não pode esperar nada de bom em troca». Uma generosidade radical, um «altruísmo perigoso». Esse compromisso com aqueles que são hostis ou indiferentes, que não retribuirão nosso afeto, pode ser chamado de «amor difícil».

Como discursou Kennedy, «não o amor descrito com tanta facilidade nas revistas populares… o verdadeiro amor é altruísta e envolve o sacrifício e a doação».

O ultimo sermão de Luther King para sua congregação, na Igreja Batista Ebenezer, em Atlanta, em 4 de fevereiro de 1968, expressa o cerne do «amor difícil». Ao descrever como gostaria de ser lembrado em seu funeral, o líder negro disse: «Gostaria que alguém falasse do dia em que Martin Luther King tentou amar alguém».

O verbo «tentar» mostra que a tarefa de amar é desafiadora e interminável. Não pode ser resumida a um clichê ou tratada com a «facilidade» que Kennedy ironizou. Tanto o então senador quanto Luther King evitavam oferecer soluções fáceis ou favorecer preconceitos preguiçosos. Eles consideravam o coração como o músculo mais importante: quanto mais ele ama, melhor ele ama. A princípio, não é fácil exercitá-lo – somos cautelosos, desconfiados em relação aos outros e temos medo da rejeição -, mas a fluência só vem com a prática.

Na véspera de ser assassinado, quando as ameaças de morte se intensificaram, Luther King proferiu um discurso profético em apoio à greve dos trabalhadores de saneamento público em Memphis, no Tennessee. I’ve Been to the Mountaintop («Eu Estive No Topo da Montanha», em tradução livre) é uma obra-prima em termos de desenvoltura e entrega, que faz uma verdadeira viagem de Jericó ao Monte Olimpo, do Alabama até a Roma Antiga.

O ápice retórico do discurso é um momento de grande intimidade («se eu tivesse espirrado, teria morrido», em referência à ocasião em que Luther King foi apunhalado com um estilete por uma mulher com transtornos mentais) e revela o tema principal de sua fala: ele se sentia privilegiado em participar da luta pelos direitos civis e havia nascido, como diz a passagem bíblica, «para um tempo como este».

Quarenta anos depois, o então candidato a presidente Barack Obama prestou uma homenagem ao legado deixado pelo ativista negro, na própria Igreja Batista Ebenezer, onde Luther King era pastor.

O pronunciamento de Obama também focou em histórias marginais e vulneráveis, que acontecem em «esquinas silenciosas de nossas vidas». Em seu tributo, o democrata narrou a trajetória de Ashley Baia («Estou aqui por causa de Ashley»), que voltou a ser mencionada no discurso mais importante de sua campanha: A More Perfect Union («Uma união mais perfeita», em tradução livre).

‘Ondas da esperança’

No início de sua primeira campanha presidencial, Obama chamava a atenção para a era dos direitos civis em Selma, no Alabama, onde Luther King liderou uma marcha histórica para combater a segregação racial em 1965. Obama definiu a relação entre as duas gerações em termos bíblicos, sendo a de Luther King representada por Moisés no «topo da montanha»:

«Estou aqui por que alguém marchou. Estou aqui porque vocês todos se sacrificaram por mim. Estou aqui apoiado nos ombros de gigantes. Agradeço à geração de Moisés; mas temos que lembrar, agora, que Josué ainda tinha um trabalho a fazer. Por mais grandioso que Moisés tenha sido, apesar de tudo o que ele fez para libertar um povo da escravidão, ele não atravessou o rio para ver a Terra Prometida.»

A declaração parece irônica se aceitarmos a ideia de que Deus proíbe Moisés de entrar na Terra Prometida como um ato de misericórdia, já que estaria sujeito a se decepcionar. No entanto, expressa a convicção de Obama de que os próprios cidadãos são os agentes de transformação: «nós somos a mudança que buscamos», «nós somos quem estávamos esperando». A construção de Jerusalém não dependeria de um único homem, mas de um despertar cívico – como sugerido pela escritura bíblica que inspirou a visão de William Blake:

«Mas Moisés respondeu: ‘Você está com ciúmes por minha causa? Quem dera todo o povo do Senhor fosse profeta’…»

Ao se dirigir a estudantes da Universidade da Cidade do Cabo, em 1966, Robert Kennedy descreveu, por sua vez, «o entusiasmo e o perigo que vêm com o progresso mais pacífico». Foi nesse discurso que ele falou sobre «ondas de esperança» – linha de pensamento que ecoou na retórica de Obama quatro décadas depois.

Segundo Kennedy, ondas de pessimismo seriam rebatidas pelas de otimismo: «Quando a expectativa substitui a submissão, quando o desespero é tocado pela consciência da possibilidade».

De fato, as últimas palavras proferidas em público por Martin Luther King, e cantadas dois meses depois no funeral de Kennedy, evocavam uma sensação impressionante de antecipação:

«Meus olhos viram a glória da vinda do Senhor.»

  1. Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Culture.
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