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O desastre em Florença que pode servir de lição para preservação do patrimônio histórico do Brasil

Enchente de 1966 causou estragos em museus, igrejas e na biblioteca de uma das principais cidades da Itália. O desastre criou uma rede de solidariedade e estimulou a criação de um refinado sistema de restauração de obras de arte, que pode trazer lições para o Brasil.

País que ostenta o maior número (54) de patrimônios da humanidade reconhecidos pela Unesco, a Itália teve num grande desastre natural que alagou o centro histórico de Florença, cidade berço do Renascentismo, uma inflexão crucial nos procedimentos de segurança adotados na sua extensa lista de bens culturais – que vão da pré-história aos dias atuais.

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O histórico italiano deixa lições, segundo especialistas do setor, para países como o Brasil, que acaba de ter o seu Museu Nacional destruído por um incêndio – mesmo que a causa de um desastre seja um fenômeno natural e a de outro a ação (ou inação) humana.

No caso da Itália, a tragédia foi provocada pela enchente – causada por fortes chuvas – do rio Arno, na Toscana, em novembro de 1966.

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O aguaceiro danificou uma parte considerável do acervo histórico de Florença (o nível da água chegou a quase seis metros de altura, inundando galerias, museus, igrejas e bibliotecas) e impulsionou uma série de medidas que foram adotadas progressivamente nos anos seguintes.

  1. Em 1844, diretor do Museu Nacional já se queixava de condições precárias e falta de recursos
  2. Os alertas ignorados que anunciavam tragédia no Museu Nacional

O trabalho desenvolvido ali levou à formação de um refinado sistema de restauro em obras de arte que se tornou referência mundial e marcou na história um dos momentos mais bonitos de solidariedade – para a preservação do acervo e limpeza da cidade – que envolveu 74 países, inclusive o Brasil.

De Florença, onde vive e leciona na Università degli Studi Firenze, a historiadora da arte italiana Cristina Acidini acompanhou com desalento o incêndio no Rio de Janeiro no início deste mês. Não faz muito tempo, ela havia visitado o local destruído. «Não há dúvidas de que se trata de uma verdadeira perda para toda a humanidade», lamentou.

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Para Acidini, que foi diretora do polo de museus de Florença e atualmente preside a Academia da Arte do Desenho, a tragédia no Museu Nacional só se compara às destruições do patrimônio histórico vistas em conflitos como a Segunda Guerra Mundial (1939-45) – que muito afetou a Itália – ou mesmo na atual guerra da Síria, que já destruiu mais de duas dezenas de locais declarados como patrimônio da humanidade. «Em tempos de paz, nunca vi algo semelhante como o desastre no Rio», ressaltou.

Se há algo positivo no episódio, acrescenta ela, está a revisão imediata das condições dos demais museus e instituições culturais do Brasil para que, no futuro, novos desastres dessa magnitude não se repitam.

Na Itália, a enchente em Florença resultou na criação de um código civil para a proteção do patrimônio histórico de todo o país e, uma década depois, na criação do Ministério dos Bens Culturais, responsável também pela área de cinema, arquivos e bibliotecas.

Na região da Toscana se criou ainda um plano de proteção ao centro histórico (um dos patrimônios listados pela Unesco) que envolve Corpo de Bombeiros, policiais e a população civil, treinada para agir em caso de emergência.

«Muitos moradores foram capacitados para, ao primeiro alarme, estarem aptos a salvar as obras de arte», disse Giorgio Federici, engenheiro hidráulico que coordenou os trabalhos de uma comissão formada na cidade sobre a enchente ocorrida há mais de meio século.

Além da prevenção contra incêndios e enchentes, o país também desenvolveu um plano antissísmico, já que é alvo frequente de terremotos.

Pântano no berço do renascimento

No dia 4 de novembro de 1966, 80 milhões de metros cúbicos de água invadiram Florença após o rompimento de um dique do rio Arno – por aqueles dias, chuvas torrenciais atingiram toda a Itália.

Além de deixar dezenas de mortos e milhares de desabrigados, a água tomou igrejas, galerias como a dos Ofícios, um dos mais antigos e famosos museus do mundo, que reúne a maior coleção de obras do Renascimento italiano, e instituições como a Biblioteca Nacional.

Pelo menos 1.500 obras de arte sofreram danos (muitas delas se perderam para sempre), assim como milhares de livros, manuscritos, esculturas e pontes. Após a água ser drenada, o centro histórico da cidade parecia um grande pântano.

A rede de solidariedade que se formou em seguida reuniu gente do mundo inteiro que chegou a Florença para ajudar na sua reconstrução – sobretudo jovens, que passaram a ser chamados de «angeli del fango», ou anjos do barro.

De máquinas para drenar a água enviadas pela Holanda e Alemanha às bananas despachadas pela Somália, a Itália recebeu ajuda de pelo menos 74 países.

O Brasil, que fez parte da rede, contribuiu com doações em dinheiro do governo do Rio de Janeiro e com o envio de notáveis como o curador de arte Deoclecio Redig de Campos (que trabalhou por anos no Museu Vaticano), além da presença de jovens estudantes que estavam à época em Paris e foram se juntar ao mutirão na Toscana.

Segundo o centro que documentou os danos da enchente, cerca de mil quadros e afrescos já foram restaurados, além de milhares de livros – quase 52 anos depois, pelo menos 80 mil volumes ainda esperam para serem restaurados.

Uma das obras-primas danificadas só voltou a ser exibida ao público no final de 2016. Trata-se do quadro A última ceia, pintura de Giorgio Vasari datada de 1546 que passou à época mais de 12 horas debaixo d’água.

Uma das obras mais importantes do Renascimento italiano, a tela passou 40 anos num depósito e só foi recuperada graças ao financiamento da fundação americana Getty em parceria com a marca de roupas Prada.

Ela voltou a ser exposta no seu lugar de origem, o antigo refeitório da basílica de Santa Croce – agora com um moldura especial que faz com que ela seja alçada ao teto em caso de novo alagamento.

Orçamento reduzido

Assim como o setor cultural brasileiro, a Itália sofre com a redução gradual do orçamento destinado à área.

Em 2017, segundo dados do Ministério de Bens Culturais, o valor disponível foi quase o mesmo do ano 2000 (cerca de 2,1 bilhões de euros anuais, após uma queda significativa na última década, consequência da crise econômica). A previsão orçamentária para este ano é de leve melhora.

Um alento, por um lado, é a enormidade do patrimônio histórico italiano, o que permite diferentes fontes de financiamentos – em todo o país, são mais de 4 mil museus, bibliotecas, monumentos, etc.

Muitos são geridos pela Igreja Católica, caso por exemplo do Museu Vaticano e da Capela Sistina, marcos artísticos de Roma, além de igrejas que abrigam obras-primas como Moisés de Michelangelo.

A participação do Vaticano na manutenção de parte do patrimônio cultural, contudo, não significa progresso. No final do mês passado desabou em Roma o teto da igreja San Giuseppe dei Falegnami, construída no século 16. A poucos passos do Fórum Romano, outro ponto bastante visitado por turistas na capital italiana, a igreja estava fechada na hora do desabamento – ninguém se feriu.

Há, ainda, fundos repassados ao país pela União Europeia. Um dos programas garantiu entre 2014 e 2020 pelo menos 490 milhões de euros para as cinco províncias do sul da Itália, região historicamente menos desenvolvida e com grandes atrações como Pompeia.

Um dos problemas do país, segundo Giorgio Federici, é a formação de pessoal que possa continuar a atuar na área da restauração e preservação do patrimônio histórico – ele diz que muitos profissionais foram aposentados compulsoriamente pelo Estado italiano.

«Um bom restaurador custa algum dinheiro, e não é simples formá-lo», conta.

Para Marco Ciatti, superintendente do Opificio delle Pietre Dure, instituto ligado ao Ministério de Bens Culturais que se dedica ao restauro de obras de arte (e criado após a enchente em Florença), a enormidade do patrimônio histórico italiano, se por um lado cria oportunidades de gestão, por outro gera obstáculos para a preservação.

Ele diz que o órgão, que já colaborou na recuperação de obras de arte de outros países, poderia ajudar a amenizar o luto cultural brasileiro. «Mas isso depende de uma ação entre os dois governos, o que ainda não foi feito», ressalta.

Um caminho, que vem sendo implementado na Itália desde 2014, é o financiamento do restauro e preservação de obras ou monumentos por parte de empresas em troca de benefícios fiscais. Nesses casos, a lista das intervenções necessárias é elaborada pelo Estado italiano.

Nos últimos quatro anos, foram mais de 1.300 financiamentos privados, que somaram mais de 200 milhões de euros pagos por cerca de 6.300 empresas ou pessoas físicas.

Um dos financiamentos restaurou e modernizou a área de visitação do Coliseu, um dos mais movimentados pontos turísticos do país. Bancado pela Tod’s, empresa italiana que produz calçados e outros acessórios de couro, a reforma custou 25 milhões de euros.

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