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Como uma princesa austríaca ajudou a articular a Independência do Brasil – e o que isso tem a ver com o Museu Nacional

Foi no palácio incendiado no domingo que Maria Leopoldina presidiu, em setembro de 1822, a sessão do Conselho de Estado que recomendaria a seu marido, Dom Pedro, que decretasse a emancipação política da colônia.

Em 2 de setembro de 1822, cinco dias antes do 7 de Setembro que entraria para a História como o dia da Independência do Brasil, um episódio fundamental do processo de emancipação política da colônia ocorreu justamente no então Palácio de São Cristóvão, imóvel histórico que, hoje sede do Museu Nacional, teve seu interior destruído por um incêndio de grandes proporções no domingo passado, também um 2 de setembro.

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Ali, a princesa Leopoldina, na qualidade de princesa regente – já que o então príncipe Dom Pedro estava em viagem a São Paulo -, presidiu uma reunião do Conselho de Estado que resultou em uma recomendação: que o príncipe declarasse o Brasil independente.

Essa é uma das histórias que seriam contadas dentro do próprio Museu Nacional neste 7 de Setembro, em palestra realizada pelo historiador e escritor Paulo Rezzutti, biógrafo da monarquia brasileira. No site da instituição ainda constava a programação: às 11h da manhã do feriado, ele iria palestrar ali sobre o papel de Leopoldina no processo de independência brasileira.

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Foi com voz emocionada que Rezzutti atendeu à reportagem da BBC News Brasil para comentar o ocorrido, na manhã de segunda-feira. «Estou em luto. Eu chorava ontem, chorava loucamente.»

«A cada lugar que começava a pegar fogo, eu pensava no que tinha lá dentro. ‘Agora está pegando fogo nas múmias que Dom Pedro comprou, agora é tal coisa…’. Estou sem palavras», disse ele.

Autor de biografias de figuras importantes relacionadas à monarquia brasileira – Dom Pedro 1º, Imperatriz Leopoldina, Marquesa de Santos e, ainda no forno, Dom Pedro 2º -, Rezzutti conhecia muito bem o Museu Nacional, ponto obrigatório de suas pesquisas.

Palestra mantida

Até terça-feira, ainda havia dúvidas se o evento seria cancelado, adiado ou transferido. Por fim, veio a confirmação: a palestra está mantida e ocorrerá no auditório do Horto Florestal, no mesmo complexo da Quinta da Boa Vista. Deve ser, portanto, o primeiro evento do doloroso reinício da instituição.

Na palestra, o historiador abordará o papel fundamental da Imperatriz Leopoldina, primeira mulher de Dom Pedro 1º, na proclamação da Independência do Brasil.

Conforme ele conta em seu livro D. Leopoldina: A História Não Contada – A Mulher Que Arquitetou a Independência do Brasil, lançado pela editora LeYa em 2017, Leopoldina foi a grande artífice da emancipação do Brasil de Portugal, assumindo um papel importantíssimo ao costurar apoio com nações europeias, por exemplo.

Em seu livro, Rezzutti mostra que a Leopoldina real em nada se assemelhava à figura caricata que entrou para os livros escolares e filmes de época. Não era sonsa nem submissa. Por meio de cartas e relatos, o historiador descobriu uma mulher resoluta e destemida, hábil articuladora política e uma perspicaz planejadora de como seria possível fazer do Brasil um país independente.

Ele pretende citar na palestra uma carta de Leopoldina para a irmã justamente descrevendo como era seu quarto no Palácio de São Cristóvão, que na época era moradia da nobreza brasileira – ele só virou museu em 1892, após a Proclamação da República. «Quero mostrar como ela via esse palácio», explica o historiador.

«Minha casa tem seis aposentos, com magnífica vista, de um lado para a serra e muitos povoados, do outro para o mar, ilhas e a Serra dos Órgãos. Começo com 1) a sala de bilhar, que é pintada simplesmente de verde e tem uma magnífica mesa de bilhar. 2) A sala de música, que tem nas paredes pinturas de todos os pássaros e árvores do Brasil, as poltronas e mesas de bois du Brésil, com bronze e junco, por causa do calor; três lindos pianos e duas arcas sobre as quais há vasos de alabastro e porcelana com paisagens, além de um magnífico relógio de bronze. As portas e sacada são de pau-brasil com trabalhos em bronze», escreveu Leopoldina.

E prosseguiu, enumerando: «3) A sala de festa, com quatro colunas com trabalho em bronze, representando cenas mitológicas, além de vasos de alabastro e porcelana com paisagens e candelabros de bronze. As poltronas e mesas de madeira amarela de Macau, com figuras entalhadas, que são muito valiosas e singularmente belas. As tapeçarias são de veludo branco, as cortinas de musselina com franjas douradas. O teto é maravilhoso, com uma cena da mitologia pintada por um francês. 4) O gabinete de toalete, de musselina branca com tafetá rosa sob dois cortinados, no meio de dois Eros de bronze adornados com guirlandas de flores, segurando de um lado um toalete masculino, do outro um feminino de platina, feito na Inglaterra, que é muito bonito, mas tão pesado que não consegui manejá-lo […]. 5) O quarto de dormir de musselina branca e rosa, adornada com guirlandas de flores e enfeites dourados e cortinados, uma cama como uma casa com um cortinado todo bordado em ouro, segurado pela águia real e Eros.»

«A linha geral da palestra é sobre a vida da Imperatriz Leopoldina, de seu nascimento em Viena (na Áustria) até a morte no antigo Palácio de São Cristóvão, que pegou fogo no domingo», resume Rezzutti.

Em sua fala, o pesquisador ressaltará a participação da princesa no processo de emancipação política do Brasil, desde sua influência ao Dia do Fico (em janeiro de 1822, quando Dom Pedro disse que ficaria no Brasil, contrariando ordem da Coroa portuguesa), até seu envolvimento ativo na independência em si.

Foi Leopoldina que convocou o Conselho de Estado naquele 2 de setembro de 1822, quando se decidiu aconselhar Dom Pedro, que estava em São Paulo, a proclamar a independência.

Sua morte no palácio e seu legado, assim como o seu interesse por Ciências Naturais também serão abordados.

Danos irrecuperáveis

Quanto ao incêndio de domingo, Rezzutti ressalta que a maior preocupação – e o maior lamento – deve ser com relação ao acervo.

«O imóvel se recupera, se restaura», comenta. «Veja o Palácio de Queluz, em Portugal. Foi incendiado inteiro em 1934 e hoje está aberto à visitação. Os palácios russos bombardeados na Segunda Guerra Mundial também estão de pé, foram todos restaurados.»

«Por outro lado, o que não vai poder ser restaurado é a memória material que se perdeu», afirma. «Era um museu que nasceu patrocinado pela família imperial. Nasceu há 200 anos, mas parte do que se perdeu lá era de Dom João 6º, parte de Dom Pedro 1º, parte de Dom Pedro 2º, parte da Imperatriz Leopoldina…»

Rezzutti lembra que a Imperatriz Teresa Cristina, mulher de Dom Pedro 2º, mantinha uma escavação arqueológica permanente no sul da Itália – de onde sua família era originária. «Por isso, o museu contava com peças etruscas e pompeianas antiquíssimas», ressalta. «Isso para não falar na Luzia, o mais antigo fóssil humano brasileiro.»

«Ou seja: o que aconteceu com o prédio é uma tristeza, uma calamidade, mas tem como ser recuperado. Materialmente, quanto ao acervo, não há o que fazer», analisa.

«O que se perdeu no domingo foi uma perda para a humanidade.»

Novo livro

Na reta final da preparação de seu novo livro, que deve ser lançado ano que vem – a biografia de Dom Pedro 2º -, Rezzutti conta que conhecer os espaços do Museu Nacional e, de certa forma, frequentá-los foi fundamental para que ele conseguisse compreender como vivia a monarquia, tema de suas obras.

«Minha relação pessoal com o museu é como a casa que ele foi um dia», resume. «Se eu não tivesse conhecido os espaços, seria infinitamente mais difícil passar para meus leitores como eram os cenários em que Dom Pedro e Dom João 6º viveram», diz.

«Isso é o que dói mais. Eu estou escrevendo sobre os espaços onde Dom Pedro 2º viveu e não tenho mais o espaço disponível, ele não pode mais ser visto», lamenta.

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