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Museu Nacional: fiação exposta, gambás e cupins entre os alertas ignorados que anunciavam tragédia

Os riscos de fogo, infiltração e até de queda do teto sobre a cabeça dos funcionários foram alertados em relatórios e inspeções. Em 2004, o então secretário de Energia do Rio de Janeiro avisou: ‘O museu vai pegar fogo’.

Com a destruição do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, que pegou fogo no domingo, o termo «tragédia anunciada» é mais uma vez usado para definir um incêndio catastrófico no Brasil.

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Embora investimentos na instituição tenham sido reduzidos drasticamente desde o início da crise política e econômica – especialmente em 2018 -, alertas sobre risco de fogo, infiltração, inundação e até queda de gesso sobre a cabeça dos funcionários do museu começaram há mais de uma década, muito antes da situação do país se deteriorar.

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Ainda em 2004, já havia o temor de que o prédio pudesse pegar fogo. Em 2016, um relatório elaborado pelo setor da Biblioteca do museu apontava para diversos problemas de manutenção; e o diretor do museu deu diversas entrevistas ao longo dos últimos anos alertando para a decadência do prédio que abrigava o maior acervo científico do Brasil e que foi residência da família real portuguesa.

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«O museu vai pegar fogo. São fiações expostas, mal conservadas, alas com infiltrações, uma situação de total irresponsabilidade com o patrimônio histórico.» Foi assim que, em 2004, o então secretário de Energia, Indústria Naval e Petróleo do estado do Rio de Janeiro, Wagner Victer, atual secretário estadual de Educação, descreveu a situação do Museu Nacional, após fazer uma visita ao local.

Em entrevista à Agência Brasil, na ocasião, ele apontou a precariedade das instalações elétricas, a existência de fiações expostas e a ausência de um sistema de combate a incêndio. À BBC News Brasil, Victer afirmou que ficou assustado com os riscos de incêndio que presenciou, ao fazer uma visita aleatória ao local.

«Fiz uma visita e fiquei horrorizado com o que vi como engenheiro, por isso resolvi vir à público na época. Muita gente me criticou dizendo que eu estava dando opinião num assunto que não cabia a mim», afirmou. O Museu Nacional é vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro, que é mantida com repasses do governo federal.

«Do ponto de vista de engenharia, é inaceitável que um prédio daquela magnitude não tenha sistema intergrado de sprinkler (equipamento que libera água ao detectar focos de incêndio), para contenção imediata de fogo, ainda mais tendo material inflamável dentro.»

Mais de 20 anos depois, o Museu Nacional firmou um contrato de financiamento de R$ 21 milhões com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para, finalmente, investir em reestruturação e na construção de um sistema de combate a incêndio. Mas o dinheiro só seria liberado após as eleições de outubro.

«Isso é uma perda não só para a cultura, mas para a educação também. Que essa desgraça muitas vezes anunciada sirva como uma ação para rever os procedimentos nas centenas de prédios tombados e museus que estão em situação de abandono. Tem que ter sistemas modernos de prevenção de incêndio», afirmou à BBC News Brasil o secretário de Educação do RJ.

‘Dejetos de animais, gambás, infiltrações e goteiras’

E os problemas reportados ano após ano pelos funcionários do museu e por inspeções externas não se limitavam ao risco de que o prédio pegasse fogo.

O relatório de 2016 da Biblioteca do Museu mencionava «circunstâncias difíceis que perduram há anos». O documento cita infestação de animais e até o risco de queda do teto.

«O prédio da Biblioteca continua sofrendo com goteiras e infiltrações, principalmente na área de guarda do acervo», alertava o documento.

«Há morcegos e gambás nos forros e ferrugens nos ferros expostos das marquises, convivendo servidores e usuários com plásticos pretos sobre estantes inteiras e baldes por praticamente todos os espaços, dejetos de animais sobre as paredes e estantes e o risco de gesso ou pedaços de concreto caírem sobre alguém ou equipamentos.»

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Ataque de cupins

A situação era tão calamitosa que um ataque de cupins no final de 2017 impediu o acesso do público a uma das principais atrações do museu. Os insetos destruíram a base onde estava montado o Maxakalisaurus – o primeiro dinossauro de grande porte a ser montado no Brasil.

Para que a peça rara voltasse a ser exibida ao público, funcionários do museu e alunos de universidades organizaram uma campanha online para arrecadar fundos e viabilizar a reabertura da exposição, sem ter que depender da iniciativa do Poder Público.

Conseguiram R$ 58 mil – mais do que o total repassado em 2018 para a manutenção do museu todo.

Funcionários já haviam alertado para riscos em entrevistas

Além dos relatórios e inspeções, o apelo por investimentos e o alerta para as consequências do abandono do prédio foram feitos diversas vezes por funcionários e diretores do museu em entrevistas.

Mais recentemente, a Sociedade Brasileira de Geologia manifestou preocupação com a deterioração do museu numa carta divulgada no dia 24 de agosto, após 49º Congresso Brasileiro de Geologia.

Na lista de prioridades defendidas pelos especialistas que assinaram o documento, «apoiar a luta do Museu Nacional por mais recursos para sua restauração e revitalização» aparecia em primeiro lugar.

Em maio, perto das comemorações de 200 anos do Museu Nacional, o diretor da instituição, Alexander Kellner, afirmou em entrevista à Folha de S.Paulo que seriam necessários R$ 300 milhões, a serem investidos ao longo de 20 anos, para que o prédio fosse completamente reformado a ponto de garantir segurança e a exposição das principais peças do acervo.

«O maior acervo é este prédio, um palácio de 200 anos em que morou d. João 6º, d. Pedro 1º, onde foi assinada a Independência. A princesa Isabel brincava aqui, no jardim das princesas, que não está aberto ao público porque não tenho condições», disse ao jornal, na ocasião.

O público tinha acesso a apenas 1% das 20 milhões de peças, por falta de investimentos que viabilizassem a exposição. O orçamento anual do museu caiu drasticamente nos últimos cinco anos, de R$ 531 mil, em 2013, para R$ 54 mil, em 2018.

O dinheiro é repassado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro que, por sua vez, é mantida com recursos do governo federal. O orçamento da UFRJ caiu cerca de 20% de 2014 a 2018, segundo informações publicadas no site da universidade.

‘Capacidade reduzida de investimento’

Em entrevista à BBC News Brasil, o ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, culpou os governos anteriores e a UFRJ pela situação de precariedade do museu. A BBC News Brasil entrou em contato com a assessoria da UFRJ, que não respondeu até a publicação desta reportagem.

«É importante frisar que o Museu Nacional não integra o sistema do Ministério da Cultura. Ele pertence à Universidade Federal do Rio de Janeiro. E as universidades têm autonomia administrativa, financeira e didática. O museu não integra o nosso organograma e orçamento», disse Sérgio Sá Leitão

Ao ser questionado pela BBC News Brasil se o governo federal não teria responsabilidade já que o orçamento da UFRJ foi reduzido durante o governo Michel Temer, ele afirmou:

«De dois anos para cá, repasses foram reduzidos em várias áreas porque os governos anteriores quebraram o Brasil. Levaram o país à pior recessão da história, em 2015 e 2016, ao maior déficit fiscal da história. É uma grande situação de descalabro. Isso fez com que a capacidade de investimento do governo federal fosse reduzido», justificou.

Sérgio Sá Leitão também afirmou que ajudou a negociar o financiamento de R$ 21 milhões do BNDES ao Museu Nacional, que sairia do papel em novembro.

«Quando eu assumi, o ministério em julho do ano passado, eu me dispus a ajudar o museu nacional, considerando toda a sua relevância. Graças a esse esforço coordenado, foi possível captar esse financiamento de 21 milhões para o projeto de revitalização», afirmou.

«Lamentavelmente, esse esforço não surtiu efeito a tempo. O projeto começaria a ser realizado agora.»

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