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“Me mato, mas não me rendo”, paulista troca vida no interior por linha de frente na guerra na Ucrânia

Rodolfo Cunha Cordeiro, conhecido entre combatentes rebeldes separatistas de origem russa como ‘Rodrigo MacGyver’, deixou Presidente Prudente (SP) para aderir a luta armada contra ‘nazistas ucranianos’.

Há quatro anos, um jovem estudante de Direito do interior de São Paulo saiu da casa dos pais de manhã, vendeu sua moto Kawasaki Ninja preta para um conhecido e voltou à tarde com uma passagem só de ida para a Rússia.

Rodolfo Cunha Cordeiro, conhecido entre combatentes rebeldes e militares como «Rodrigo MacGyver», abandonou a faculdade em Presidente Prudente (SP) e hoje, aos 28 anos, vive entre explosões de morteiros, granadas e cadáveres como um dos protagonistas de uma guerra que se arrasta desde 2014 em uma das fronteiras mais tensas do planeta.

Ele mora na região de Donetsk, no leste ucraniano, e aderiu à luta armada junto a forças separatistas de origem russa que ocuparam territórios, órgãos públicos locais e autoproclamaram um Estado independente da Ucrânia – que por sua vez não reconhece a insurgência e contra-ataca o que chama de investida terrorista.

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A extrema violência de ambos os lados na região já resultou, segundo as Nações Unidas, em mais de 10 mil mortes, incluindo pelo menos 3 mil civis.

  1. Quem é o guerrilheiro brasileiro capturado na Ucrânia
  2. Qual é o poder militar da Rússia e a quem ela ameaça?

A BBC News Brasil localizou Cordeiro e manteve contato com o combatente por conversas telefônicas no início deste mês. Seu testemunho revela uma vida solitária em busca de reconhecimento e o que ele chama de «aventura» e «desafio».

Os relatos do brasileiro, que diz ter se deslocado para a área para defender o «povo russófono de nazistas ucranianos», indicam que o conflito que já deixou mais de 1,7 milhão de pessoas desabrigadas ainda persiste.

A menção aos nazistas ecoa uma narrativa presente na propaganda oficial russa sobre a Ucrânia – que nega enfaticamente a existência desses grupos dentro de seu governo.

Visto como «terrorista» e «ameaça à segurança nacional» por soldados do governo ucraniano, o brasileiro se mostra seguro e tranquilo.

«Eu não tenho medo, não. Não tenho cidadania ucraniana, nunca estive em território ucraniano. Sou um simples combatente da República Popular de Donetsk», diz, em referência à «nação» autoproclamada pelos separatistas.

«Se eu for ferido e houver a possibilidade de ser pego pelo Exército, eles podem me capturar, mas não vão me levar. Se vir que não tem jeito, eu me mato, mas não me rendo», anuncia com voz sempre calma, em um momento de pausa entre treinamentos militares.

‘Morre gente todo dia’

Com apoio do serviço ucraniano da BBC, a reportagem confirmou a identidade do brasileiro e sua presença na região. Nome, fotos e informações pessoais de Cordeiro aparecem em bases de dados sobre rebeldes elaboradas com possível cooperação do Serviço Secreto ucraniano. Os registros também mostram entradas do combatente brasileiro em hospitais russos.

Os dados levantados pelos ucranianos reafirmam que o brasileiro chegou ao país em 2014 e lutou contra forças militares do governo como franco-atirador, em uma brigada motorizada de fuzileiros. A checagem de informações na área ocupada pelos rebeldes é dificultada pela proibição da atuação de jornalistas independentes.

A presença de Cordeiro na Ucrânia indica que o brasileiro teria entrado ilegalmente em território ucraniano, já que há rigoroso controle na fronteira com a Rússia.

Entre outras condecorações, Cordeiro chegou a receber uma medalha especial por «méritos de luta» de milícias armadas autointituladas Todo-Poderoso Exército do Don e do Exército Cossaco.

Ofuscada por conflitos mais conhecidos, como o da Síria ou entre israelenses e palestinos na Faixa de Gaza, a guerra na fronteira da Ucrânia reflete a velha disputa de influência entre o Ocidente (o governo ucraniano busca aproximação com a Europa e é aliado dos Estados Unidos) e a Rússia – que apoia informalmente os rebeldes, mas não reconhece participação oficial no conflito além da «ajuda humanitária aos russófonos».

«Até hoje, morre gente todo dia», diz Cordeiro, citando bombardeios e explosões em campos minados. «Encontro amigos na rua e ouço: ‘Você lembra de fulano, que serviu com você em tal região? Faleceu ontem’. É triste, mas sempre acontece.»

A guerra estourou após a anexação da península ucraniana da Crimeia pela Rússia, em 2014, na sequência de confrontos militares e de um plebiscito considerado ilegal e não reconhecido pela Europa e pelos Estados Unidos.

De acordo com observadores e com o governo ucraniano, a votação ocorreu sob o controle de militantes armados liderados por russos como Igor Strelkov (Girkin), um veterano de guerra classificado como comandante do «Exército da República Popular de Donetsk».

A tensão abriu espaço para que milícias pegassem em armas e se insurgissem contra o governo da região de Donbass, região onde fica Donetsk. A maioria da população da região fala russo, mas tem origem e passaporte ucranianos.

‘A gente acaba se acostumando’

Um dos principais momentos da guerra foi a tomada do aeroporto de Donetsk pelos rebeldes, em uma batalha que se estendeu entre maio de 2014 e janeiro de 2015.

«Muita artilharia, muita gente ferida», lembra o brasileiro, que atuou na linha de frente pró-Rússia. «Vários amigos ficaram feridos, nada foi tão estressante para mim.»

De acordo com autoridades ucranianas, 200 soldados do país teriam sido mortos na batalha. Estrategicamente importante, a conquista do aeroporto é considerada uma das principais vitórias dos rebeldes na região porque permitiria que munições, equipamentos e mão de obra fossem transportados por via aérea para a zona de conflito.

«O aeroporto ficou tão destruído que não compensa mais. Se a gente quisesse usar, era melhor construir um novo do zero do que tentar tirar todos os escombros. Não dá nem para andar lá. Levanta uma poeira de gesso, concreto e dessas mantas de vidro para isolamento térmico que você respira e passa mal na hora», diz.

Os primeiros meses de guerra foram os mais intensos, diz o brasileiro.

«No começo, eu ficava um mês inteiro no front, sem tomar banho, parado. E quando era inverno, piorava», lembra o brasileiro em entrevista à BBC News Brasil. As temperaturas na região chegam a 15 graus negativos nos meses de dezembro e janeiro.

Cordeiro diz que «muitas vezes» foi atingido por estilhaços e chegou a ser operado ao fraturar o joelho.

«Minas, granadas… às vezes cai uma perto de você, rasga a pele e entra. A gente acaba se acostumando», diz. «Vou para o hospital, retiro o estilhaço e volto.»

Segundo registros ucranianos, o brasileiro teria sido operado em hospital em São Petersburgo, na Rússia.

Ele confirma à BBC News Brasil: «Estava correndo de um ataque e tinha um buraco aberto por um morteiro. Eu não vi porque tinha muita neve. Na adrenalina, enquanto os morteiros vinham, eu caí e o peso do corpo foi sobre a minha perna. Tive dores, dores, dores e descobri que tinha rompido o ligamento e precisei fazer uma operação. Tenho que fazer mais duas cirurgias, que ainda não fiz».

‘Se morrer, vai ser coisa rápida’

Fascinado desde a infância por forças de segurança e armas («dizem que é perigoso, mas é assim que me realizo»), Cordeiro conta que não serviu o Exército brasileiro, mas chegou a trabalhar como segurança particular após frequentar cursos privados de «segurança VIP», «segurança de carros fortes» e «escolta armada».

Em 2014, por meio de grupos no Facebook, começou a se comunicar com brasileiros e estrangeiros que se organizavam para lutar como voluntários ao lado dos separatistas pró-Rússia na fronteira da Ucrânia.

«Comecei ver muita coisa na internet. Existiam grupos internacionalistas que estavam indo ao Donbass (onde fica Donestk) em solidariedade», explica Cordeiro, que aprendeu os caminhos para a zona de guerra e decidiu viajar sozinho.

Ele conta que já pensava em ir à Rússia para estudar o idioma local, «talvez em Moscou ou São Petersburgo».

«Sempre gostei dos costumes, do idioma, sempre fui fascinado pela história da União Soviética, de Stalin, Lênin», diz. «Quando vi a situação aqui e vi que havia muitos voluntários estrangeiros, eu pensei, ‘Pô, eu vou ajudar também e prestar minha solidariedade’.»

Mas, por que na Ucrânia?

«Se eu pudesse pegar em armas para lutar pelo que acredito no Brasil, eu pegaria», ele diz. «Eu fui estudar Direito para entender os crimes, os artigos da Constituição. Pensava em fazer um concurso para ter estabilidade, ser polícia civil ou federal. Mas apareceu a oportunidade e larguei.»

«Ao mesmo tempo para ajudar as pessoas, mas também pela aventura, a adrenalina, o desafio. Eu queria sentir.»

Após tantos anos na guerra, a iminência da morte virou algo natural na vida do brasileiro.

«Não tenho medo de morrer», diz. «Tenho medo de me ferir gravemente, ficar inválido e não morrer. Já pensou viver o resto da vida em uma cama? Como aconteceu com o ‘Super-Homem’ (o ator Christopher Reeve, que ficou tetraplégico após cair de um cavalo), que ficou em estado vegetativo? É muito mais sofrimento. Se acontecer de ter que morrer, vai ser coisa rápida. Não vai ter muita dor, dependendo do ferimento», diz.

Ele diz perder amigos e colegas rebeldes «sempre» – seja mortos, ou presos, como o brasileiro Rafael Marques Lusvarghi, detido no início do ano pelas forças de segurança da Ucrânia.

«Esse era muito louco», diz, em referência a Lusvarghi, que entre 2014 e 2015 foi visto como uma espécie de «garoto propaganda» das forças rebeldes na região, já que falava português, inglês e russo fluentes.

A mãe do combatente

A BBC News Brasil localizou por telefone, em Presidente Prudente, a enfermeira Sandra Regina da Cunha Cordeiro, de 53 anos.

«Como ele está?», pergunta a mãe de Rodolfo quando a reportagem se identifica.

Com a voz trêmula, prestes a fazer uma cirurgia no tornozelo, ela conta que tentou dissuadir o filho da região, sem sucesso.

«Muitas vezes eu chorei desesperada. Tive vontade de ir atrás dele e trazer ele de volta. Mas é complicado, muito difícil», diz.

«Um dia ele chegou e falou ‘mãe, tirei meu passaporte’. Uma semana depois, tinha a passagem», conta. «Ele pegou a gente de surpresa. Eu chorei, pedi, disse ‘não, não, não vai’, mas não teve jeito.»

Casada há 32 anos com o motorista Edson Cordeiro e mãe de outros dois filhos homens, ela diz que apoiou a decisão ao perceber que não conseguiria fazê-lo mudar de ideia.

«Ele quis ir para lá porque falou que queria ajudar aqueles que estavam precisando», diz. «Então, a gente deu força e ajudou como pode.»

Nos últimos quatro anos, mãe e filho só se viram pelo celular, durante ligações de vídeo pelo WhatsApp. Quando o filho fica mais de uma semana sem dar notícias, Sandra diz que «entra em desespero».

«A gente sempre foi muito ligado. Sou uma mãe coruja. Tenho três filhos e fui sempre de ajudar em tudo. Eu queria ir, mas não tenho condições (financeiras).»

Mais de uma vez, ela ressalta as qualidades do filho do meio.

«Rodolfo sempre foi um bom filho, nunca deu trabalho. Muito inteligente, estudava, trabalhava, ajudava em casa. Nunca tive queixa, sabe? Sempre foi muito responsável.»

Sandra confirma que armas sempre foram o principal interesse de Cordeiro.

«Sempre gostou de armas. Desde pequeno. Quando brincava, ele sempre falava que era policial», diz. E emenda: «Nunca foi violento, sempre foi uma pessoa calma… Eu e o pai dele temos muito orgulho do Rodolfo.»

A reportagem pergunta que recado ela mandaria ao filho.

«Volte.»

No dia seguinte à entrevista, ela pede ao repórter para responder novamente à pergunta. Ela então encaminha uma mensagem de texto enviada ao filho.

«Eu falei, filho, que minha vontade é que você volte para casa. Mas te digo: a saudade é grande e tenho muito orgulho de você, filho, bom trabalhador, honesto, luta pelo que quer», diz o texto. «Nunca se esqueça que te amamos muito.»

‘Não sou mercenário’

Cordeiro diz ter atuado por quase três anos como voluntário das guerrilhas locais, sem qualquer salário. «Dentro de um batalhão você tem alimentação, fardamento, moradia. Você acaba não tendo despesa se é solteiro», diz o combatente, sem especificar quem bancou esses custos.

Cansado da linha de frente, depois de tentar sem sucesso emprego como segurança em supermercados da região, ele precisou continuar no serviço «militar» e atua hoje como uma espécie de «policial federal» na guarda de fronteiras e proteção de autoridades locais.

«Meu salário deve ser menos de 800 reais, porque o custo de vida é muito baixo. Um médico recebe por mês cerca de 600 reais», diz. «Me chamam de mercenário, dizem que vim por dinheiro… No Brasil eu ganhava quatro vezes mais do que recebo aqui. Isso não tem lógica.»

O governo brasileiro não reconhece a existência da autoproclamada República Popular de Donetsk.

Procurado, o Itamaraty não comentou o caso específico de Cordeiro, mas alertou que «diante dos possíveis riscos decorrentes do quadro de segurança nas províncias de Kharkiv, Donetsk e Lugansk, na Ucrânia, o Ministério das Relações Exteriores recomenda aos turistas e cidadãos brasileiros residentes na Ucrânia que evitem as viagens de caráter não essencial àquelas regiões».

«Recomenda-se, ainda, que os cidadãos brasileiros evitem, em todo o território ucraniano, áreas onde possam ocorrer manifestações. A Embaixada do Brasil em Kiev permanece à disposição para eventuais orientações aos cidadãos brasileiros», continuou o Itamaraty, em nota.

A reportagem apurou com fontes na diplomacia brasileira que lideranças separatistas teriam procurado a embaixada brasileira em Kiev em 2015 citando a presença de dois brasileiros na região.

Desde então, nenhum contato formal ou informal teria sido feito com o governo do Brasil.

‘Não sou comunista’

Apesar de a Rússia negar sua presença em Donbass, jornalistas russos identificaram soldados de diferentes batalhões na região. Oficiais do Serviço de Segurança russo, como Alexander Alexandrov e Yevgeny Yerofeyev, foram capturados pelo Exército ucraniano com documentos oficiais de identificação russos.

Durante as conversas com Cordeiro, a reportagem insiste em tentar entender o que motivou o brasileiro a deixar sua cidade no interior para se embrenhar em uma guerra violenta do outro lado do mundo.

«Vim fazer o que acho justo. Tem muito nazista aqui», diz, elogiando a história e a «bravura» dos antigos Exércitos soviéticos.

Mas ele emenda enfático: «Não faço parte de nenhum grupo comunista.»

Quando não está no «front» ou patrulhando a fronteira, a rotina de Cordeiro é definida como uma mistura de treinamento físico intenso (até quatro horas de corrida, artes marciais, exercícios físicos e esportes coletivos como futebol e basquete) e treinamento militar – atualmente, ele também orienta os recém-chegados para o trabalho na zona de guerra.

A descrição sobre seu tempo livre revela uma vida solitária em Donetsk.

«Nos dias de folga, todo mundo vai ver suas famílias, ou eles bebem nos bares. Eu sou solteiro e não bebo álcool, nem fumo nada. Eu sou um cara ‘geração saúde’. Então eu vou para a academia. Eu passo essas noites trabalhando para melhorar meu corpo «, diz.

«Sou muito diferente dos outros homens da república.»

Questionado se a Copa do Mundo trouxe algum tipo de alento para a região, ele disse que o evento pode ter ajudado a Rússia em outros setores, «mas, do meu ponto de vista, não em relação a esta guerra».

A BBC News Brasil pergunta quantos homens Cordeiro abateu durante a guerra. «É complicado dizer isso. É uma pergunta difícil. Há um regulamento ético que diz que, mesmo se eu tiver ou não tiver feito isso, eu não posso comentar.»

«Mas, mesmo sendo um combatente da República de Donetsk, eu respeito o inimigo», continua. As pessoas, tanto aqui quanto na Ucrânia, estão cansadas desta guerra.»

Após ouvir que o jovem não pretende voltar ao Brasil «tão cedo», a reportagem pergunta se ele acompanha o cenário político do país e se tem um favorito para as eleições presidenciais deste ano.

«Nem sei quem são os candidatos no Brasil. Escuto o pessoal falar que tem o Bolsonaro, que ele vai liberar porte de arma, essas coisas, mas não tenho muito conhecimento. Não tenho televisão, nem acesso a muita informação sobre Brasil. Minha mãe ou amigos é que às vezes acabam me contando algumas coisas», afirma.

«Mas estou totalmente desinformado.»

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