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A misteriosa história da condessa brasileira que tem dois túmulos

Condessa considerada fundadora de município no interior do Rio de Janeiro morreu em Londres em 1882; seu corpo teria chegado ao Brasil três anos depois, mas pesquisadora descobriu túmulo original na capital britânica.

Era uma vez uma senhora muito rica, uma condessa, considerada fundadora do município de Três Rios, no interior do Rio de Janeiro. Quando ela ficou doente, já viúva, decidiu tomar um navio e ir se tratar em Londres. Não sobreviveu. O traslado de seu caixão levou anos até chegar finalmente ao município, onde ela foi enterrada em um mausoléu de destaque.

Cento e trinta anos depois, no entanto, a pesquisadora e genealogista Cinara Jorge descobriu que o caixão que veio para o Brasil provavelmente não continha os restos mortais da condessa Mariana Claudina Pereira de Carvalho, a Condessa do Rio Novo.

Nas catacumbas de um cemitério na capital britânica há outro caixão, onde repousam seus verdadeiros ossos.

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Tudo começou quando Cinara, membro do Colégio Brasileiro de Genealogia, decidiu mergulhar nos registros biográficos de Mariana Claudina – com o objetivo de escrever o livro, Pioneiros dos Três Rios – A Condessa do Rio Novo e Sua Gente, publicado em 2012.

«Começaram a aparecer documentos incríveis. Papéis do arquivo do Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores) que nunca tinham sido estudados», disse à BBC News Brasil.

Os documentos antigos revelavam como foram os últimos dias da condessa em Londres, onde tratava um câncer.

Câncer no século 19

Mariana já era uma viúva de mais de 60 anos quando descobriu que tinha um tumor no ovário. Proprietária de diversas fazendas de café – que ela administrava pessoalmente, já que não tinha filhos – decidiu se tratar com o que havia de melhor à época.

Em 3 de junho de 1882, ela chegou a Londres. Ali seria atendida pelo médico Thomas Spencer Wells (1818-1897), obstetra, pioneiro em cirurgias abdominais e reputado a ponto de ter sido o cirurgião da rainha Vitória.

O procedimento foi marcado para o dia 5. Ao que tudo indica, pois era assim que Wells costumava fazer, a operação ocorreu na própria casa onde a condessa ficou hospedada – o médico preferia levar a mesa cirúrgica para a residência de seus pacientes.

Cartas arquivadas no Itamaraty contam que a condessa morreu às 18h do mesmo dia, por exaustão, ao não conseguir se recuperar da cirurgia, conforme atestou o então cônsul-geral do Brasil em Londres, José Luiz Cardoso de Salles.

Mariana, seu médico particular – o brasileiro Rodolpho Augusto de Oliveira Penna – e Camila, sua escrava de confiança, ficaram em um imóvel alugado na George Street, no bairro de Marylebone.

De acordo com uma carta do proprietário da casa, Albert Tatford, para o cônsul brasileiro, o acordo estipulava que o imóvel ficaria alugado por um mês, «a sete guinéus por semana». O contrato, no entanto, não chegou a ser cumprido.

«A cirurgia foi feita no dia 5, às 14h. Ela faleceu às 18h do mesmo dia. Foi sepultada na quarta-feira, dia 7, às 9h. Dr. Penna e a criada negra deixaram minha casa na quinta-feira, dia 8, às 7h30», diz Tatford.

«Dr. Penna ameaçou, se eu lhe cobrasse o aluguel completo, que ele iria encher os quartos com mulheres de caráter imoral. Portanto, eu só lhe cobrei a tarifa de uma quinzena. Dr. Penna se recusou a pagar até isso.»

Na época, a dama de companhia europeia da condessa, Izabel Constance Morant, afirmou que «ela inalou pouco clorofórmio, mas foi sedada imediatamente – a cirurgia foi feita com perícia, e a enfermeira era capaz, mas ela (Mariana) não teve forças para se reanimar. Eu acredito que por sua idade, pois sua condição era boa para a cirurgia».

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Quando voltou ao Brasil, o médico Oliveira Penna deu a notícia da morte da condessa e declarou que havia mandado embalsamar o corpo.

«Três anos depois, a imprensa divulgou que o caixão com os restos mortais dela estava no cais do Rio de Janeiro, endereçado ao médico. E que ninguém o havia buscado», conta Cinara Jorge.

Aborrecido com o aparente descaso, Antonio Barroso Pereira, Barão e Visconde de Entre Rios, foi retirar o caixão no porto. Ele mandou construir um túmulo em mármore de Carrara e realizou o sepultamento da condessa na cidade, em anexo à Capela Nossa Senhora da Piedade, em Cantagalo – justamente a propriedade que foi originalmente da condessa.

Só no dia 6 de junho de 1887, cinco anos depois da viagem de Mariana a Londres, a cerimônia fúnebre foi realizada, com todas as honras e homenagens.

Suspeita

Durante sua pesquisa, Cinara começou a se deparar com jornais da época que traziam alguns relatos estranhos. «O que me espantou foi que havia textos que falavam que, em vez do corpo da finada, quando o caixão foi aberto antes do sepultamento, havia ossos envolvidos em serragem», afirma.

A partir daí, ela decidiu buscar registros do sepultamento da condessa – e da possível exumação do seu corpo para ser transportado ao Brasil – em cemitérios de Londres.

Para tanto, ela teve a ajuda do oficial de chancelaria do Ministério das Relações Exteriores Haríolo dos Santos Araújo, então adido na embaixada londrina.

«O cemitério católico mais próximo de onde a condessa estava é o Saint James, que fica a dois minutos a pé da casa que ela alugou», disse Araújo à BBC News Brasil. Mas não era ali que estava o registro.

«Eu havia identificado, na internet, o cemitério de Saint Mary, que também não era muito distante de onde a condessa morava. Pensei nele como o mais provável, porque é um cemitério identificado como católico, e não anglicano, como o outro», diz Araújo.

«Visitei o cemitério em 29 de agosto de 2015, percorrendo as alas e lendo as lápides que ainda existiam, mas não encontrei menção à condessa.»

Dias depois, Araújo enviou um email para a secretaria do cemitério. «Pensei na possibilidade da cova não ser identificada ou do corpo ter sido exumado e a eventual lápide ter sido retirada», conta.

No dia seguinte veio a resposta, positiva. A condessa estava enterrada lá, mas dentro da catacumba da capela.

«Mostraram-me o registro do enterro da condessa na cripta da capela. Havia realmente um caixão no nicho 199, o número indicado no registro citado. Não havia registro de pedido de exumação do corpo depositado naquele mesmo nicho», diz.

As fotos do nicho e da cripta ilustram esta reportagem.

No Brasil, Cinara ainda pediu que o cemitério lhe enviasse algum documento informando se a condessa havia sido exumada alguma vez.

Em email datado de 4 de setembro de 2015, Anna Humphrey, superintendente do cemitério, é categórica: «Posso confirmar que a falecida mencionada descansa em nossas catacumbas inferiores e, de acordo com nossos registros, não foi exumada.»

Esclarecimentos

A condessa deixou, por testamento, suas terras para sobrinhos e parentes. Mas a fazenda principal, a Cantagalo, acabou ficando para seus escravos – que se viram alforriados. A administração da propriedade acabaria entregue à Casa de Caridade Nossa Senhora da Piedade, uma instituição beneficente fundada por ela.

O túmulo onde estaria enterrada Mariana Claudina Pereira de Carvalho fica em terreno administrado pela Casa de Caridade.

Mas Cinara gostaria que os restos mortais ali fossem exumados e que exames de DNA esclarecessem de uma vez por todas que a condessa nunca esteve sepultada em Três Rios. «Após o deslinde desse engano centenário, gostaria que houvesse o traslado dos restos que estão em Londres para Três Rios», afirma.

De acordo com ela, a administração da Casa de Caridade se opõe ao processo. A reportagem da BBC News Brasil tentou contato com a provedoria da instituição por email três vezes desde a semana passada, mas não recebeu retorno.

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