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Do chá ao jiu-jitsu: as influências japonesas na cultura do Brasil

São celebrados os 110 anos da integração cultural mais improvável do século 20, protagonizada por brasileiros e imigrantes japoneses. Do costume de usar chinelos de dedo ao desenvolvimento das artes marciais, essa troca cultural permanece viva no país.

Em 1907, o empreendedor Ryu Mizuno, nascido em 1859 na cidade de Koshi, no Japão, depois de ler um relatório otimista sobre a condição da cafeicultura do Brasil, cruzou oceanos para conhecer de perto o país.

Ele fretou para o país o navio «Kasato Maru», que ancorou no Estado do Paraná no dia 18 de junho de 1908, trazendo a bordo 783 imigrantes japoneses. O diário de bordo de Mizuno é considerado o primeiro registro da imigração japonesa no Brasil.

Neste 18 de junho, data em que é celebrado o Dia da Imigração Japonesa no Brasil, se comemoram também 110 anos da relação nipo-brasileira: o Brasil abriga cerca de 1,6 milhão de nikkeis, descendentes de japoneses não nascidos no Japão. É a maior população de origem japonesa fora do país asiático.

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Além dos sabores da tradicional culinária japonesa, o Brasil recebeu várias outras influências da cultura nipônica que se misturaram e modificaram a cultura nacional.

Na paisagem urbana, bairros como o da Liberdade, em São Paulo, e cidades, como Bastos, no interior do Estado paulista, e Assaí, no Paraná, foram fundados por imigrantes japoneses e conservam até hoje características do país oriental.

Neste Dia da Imigração Japonesa, lembramos as principais influências da imigração japonesa na cultura brasileira:

Artes marciais

Para o doutor em História das Artes Marciais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Tiago Oviedo Frosi, a relação que se desenvolveu entre as culturas japonesa e brasileira é uma das experiências bem-sucedidas de integração entre povos que ocorreram no século 20.

Frosi defende que coube às artes marciais, prática capaz de superar barreiras linguísticas e de comunicação, a primeira ponte estabelecida nessa improvável relação de culturas tão diferentes quanto foi Brasil-Japão.

O judô chegou no Brasil em 1914, trazido pelo mestre japonês Mitsuyo Maeda (1878-1941), que viajava o mundo desafiando lutadores. Até então, os brasileiros conheciam poucas modalidades de combate, sendo as mais populares o pugilismo e a capoeira.

«Por exigência do Instituto Kodokan (a ‘meca’ mundial desta arte marcial, no Japão), Maeda foi proibido de usar o nome judô para identificar sua técnica fora do Japão. Usava, então, o nome da antiga arte japonesa de combate desarmado que deu origem ao seu judô, o ju-jutsu. Com o tempo e os equívocos de grafia na Europa e na América, o nome ‘jiu-jitsu’ se popularizou», explica Frosi.

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Outro fator que influenciou na disseminação das artes marciais entre os brasileiros foi a adoção dessas lutas nas forças policiais e Forças Armadas do Brasil.

«Mesmo diante desses vários exemplos, o jiu-jitsu é, a meu ver, a principal contribuição dessa relação Brasil-Japão, visto que o esporte foi trazido por um grande mestre japonês e aprimorado aqui, por brasileiros», analisa o pesquisador.

E, aos poucos, «os brasileiros foram sendo incluídos nos grupos de práticas de artes marciais e se integrando por intermédio dos treinamentos e dos eventos da área à comunidade japonesa recém-chegada no Brasil».

Hoje, segundo ele, o judô tem cerca de 2 milhões de praticantes em todo território nacional. Depois, vêm o jiu-jitsu brasileiro e o karatê, com cerca de meio milhão de praticantes cada.

Embora as diferenças culturais tenham mantido o ensino e a organização das artes marciais na mão dos imigrantes e descendentes por muito tempo, «muitos brasileiros se graduaram nessas artes, se tornando também grande atletas e instrutores. Atualmente, há descendentes e brasileiros liderando juntos federações e escolas de artes marciais japonesas, provando que os aspectos mais gerais da cultura japonesa já estão bem integrados à cultura e ao dia-a-dia do brasileiro», agrega o pesquisador.

«Não é nenhum exagero dizer que as artes marciais foram a principal porta de acesso dos brasileiros à forma de pensar e agir dos japoneses.»

Espiritualidade e filosofia nipônicas

No campo das religiões trazidas pelos imigrantes japoneses, há destaque para o budismo, que veio para o Brasil no começo do século 20, mas foi perseguido por causa do preconceito com as religiões orientais e por causa da barreira linguística. Para conseguirem imigrar, monges japoneses entravam no país vestidos de agricultores, como eram a maioria dos imigrantes orientais.

Até hoje, o budismo não é a religião de parte significativa da população brasileira – no Censo de 2010, 243,9 mil pessoas, em um universo de 190,7 milhões, se declararam budistas.

No entanto, para o doutor em Ciência da Religião pela PUC-SP Rafael Shoji, a estética e os valores que acompanham as religiões orientais influenciam a cultura nacional até hoje.

«A influência do budismo enquanto número de instituições e convertidos é ainda relativamente pequena, mas vejo que há grande interesse na espiritualidade oriental a partir das artes marciais, festivais japoneses, ikebana etc», comenta Shoji.

«Existe uma admiração pela cultura e religiões japonesas, que passam para o brasileiro a ideia de disciplina, tradição e perseverança, ilustrada também em práticas como karatê, judô, aikidô etc. Muitos festivais japoneses também são realizados em cidades brasileiras usando essa combinação estética e atraindo grande público.»

Frosi lembra que o sucesso da prática de artes marciais japonesas no Brasil se deu, em partes, porque ela foi adotada pela cultura brasileira em dois níveis: tanto como prática esportiva como prática filosófica.

«Há incontáveis grupos de praticantes de artes marciais menos como atividades físicas e mais como práticas filosóficas, como o aikidô e o kendô, que têm muitos adeptos no nosso país por oferecerem filosofias de vida cativantes», explica.

Mangá, artes plásticas e sandálias

O trabalho de grandes cartunistas nipônicos, como o de Claudio Seto, japonês naturalizado brasileiro que introduziu o estilo mangá nos quadrinhos nacionais em 1967, fez com que a estética japonesa permanecesse no Brasil.

Nas artes plásticas, o pintor nipo-brasileiro Tikashi Fukushima (1920-2001) foi um dos pioneiros no Brasil do movimento abstracionista, seguido por grandes nomes da atualidade, como a japonesa naturalizada brasileira Tomie Ohtake, responsável por diversos painéis e esculturas que compõem a paisagem urbana de São Paulo.

Em entrevista à BBC News Brasil em janeiro de 2017, o curador do Instituto Tomie Ohtake, Paulo Miyada, classificou Tomie como um ícone múltiplo, «que contempla, a um só tempo: a singularidade da cultura nipo-brasileira desenvolvida no último século; a importância e ousadia das artistas mulheres na modernidade nacional; e o potencial inventivo de criadores que não cabem na alcunha de ‘jovens'».

No campo da moda, as sandálias brasileiras de dedo mundialmente famosas foram inspiradas nas tradicionais sandálias japonesas «zori», feitas de palha de arroz. Na versão brasileira, a matéria-prima para os chinelos passou a ser a borracha.

Dieta mais verde e chás

O habito de consumir hortaliças nas principais refeições no Brasil foi um costume herdado dos primeiros imigrantes japoneses.

Além disso, na lavoura, principal lugar onde estiveram os japoneses nos anos de 1910 e 1920, muitas técnicas de plantio de frutas que hoje estão inseridas na mesa do brasileiro foram trazidas pelos imigrantes.

Na região paulista, por exemplo, o plantio do pêssego e do morango foi iniciado por famílias nipônicas. Diversas outras frutas, como a maçã Fuji e o caqui, foram trazidas pelos japoneses. Elas não apenas eram parte da dieta japonesa como seu plantio representou uma chance de lucro mais rápido do que o plantio e comércio de café, até então popular no Brasil.

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Para o consumo próprio, os japoneses trouxeram nos navios sementes que não eram consumidas aqui, introduzindo na dieta brasileira a soja, o arroz cateto, o feijão azuki, a couve japonesa, o pepino, a acelga, o nabo, o rabanete, a batata-doce, o inhame e a cebolinha, entre outros.

O consumo de chás também pode ser atribuído aos imigrantes do oriente. O plantio do chá preto teve início no Brasil no Vale do Ribeira, região de São Paulo, em 1935.

Para o plantio, colheita e comercialização das mudas de chá, as famílias japonesas construíram na região as Casas de Chá, fábricas erguidas de acordo com a arquitetura japonesa à prova de terremotos: construções feitas somente do encaixe de madeira, sem a utilização de pregos e parafusos.

A Fábrica de Chá Shimabukuro, a Fábrica de Chá Amaya, Fábrica de Chá Kawagiri, a Fábrica de Chá e Residência Shimizu, localizadas na região da cidade de Registro (SP), assim como o Engenho, Sede Social e Residência Colônia Katsura, na cidade de Iguape (SP), são exemplos dessas construções tradicionais japonesas ainda existentes no Brasil e que podem ser visitas pelo público.

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