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‘Olhei para o bebê e não senti nada especial’, diz mãe

Em 18 de agosto de 2010, a gaúcha Jeanyne Garcia, 33, ganhava Fabian no Hospital da Luz, em Lisboa, Portugal. A historiadora tinha o sonho de ser mãe desde criança, mas quando a maternidade aconteceu não foi como ela esperava. “Pari um filho, mas não pari o tal amor incondicional. Ele não veio em um pacote junto com o choro estridente. Olhei para o bebê e não senti nada especial, só estranheza”, disse.

Jeanyne faz parte de uma parcela de mulheres que amam seus filhos, mas se sentem pouco à vontade com a obrigação de exercer o papel da maternidade. O esgotamento físico e mental é algo comum, assim como a exaltação da gravidez como uma experiência encantadora, porém, existem muitas mães que discordam dessa romantização e sofrem preconceito por ter tal opinião.

A historiadora conta que a gestação foi totalmente diferente do que ela esperava e que as mudanças hormonais contribuíram muito para os sentimentos que vivenciou após o nascimento do filho. Jeanyne, que hoje trabalha como faxineira na França, era uma pessoa ativa, gostava de estar em forma, e com a gravidez as mudanças no corpo surgiram. “Eu parecia uma gelatina ambulante, engordei muito e tinha várias mudanças de humor”, relembra.

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Além das alterações físicas, Jeanyne vivenciou muitos momentos de tristeza e angústia. «Será que vou amar este filho? Quando será que vou ser arrebatada por este amor tão forte e incondicional que as mães tanto pregam?», questionava-se. Quando ganhou o bebê, ela decidiu parar de trabalhar e dedicou-se apenas a cuidar da criança, que era muito dependente e queria ficar o tempo todo no colo.

O resultado foi que a historiadora não conseguia fazer nada, nem mesmo as tarefas domésticas, se não fosse ao som de gritos. “Tinha momentos em que eu começava a chorar também e às vezes aproveitei os gritos dele para dar os meus enquanto soluçava sozinha no quarto. Eu tinha raiva de quando me diziam que isto era a melhor coisa que podia acontecer a uma mulher”, conta.

O sofrimento psicológico passado no período pós-parto tem consequências até os dias atuais na vida de Jeanyne. “Todas as necessidades que importavam eram as do bebê. A perda da identidade é o que até hoje me custa a recuperar.” De acordo com a psicóloga e coaching de mães Isabela Cotian, 35, muitas mulheres experimentam sentimentos de perda de liberdade e de não valorização quando ganham seus bebês. “O papel de mãe não tem valorização na sociedade, ninguém ganha promoção ou mérito porque amamentou ou porque seu filho dormiu a noite inteira. É uma função solitária e desvalorizada”, explica.

Jeanyne não é a única que não enxerga a função como algo maravilhoso. A jornalista e empresária Karen Cardoso, 30, mãe de Maria Flor, 4, acredita que a maternidade é muito opressora. “Quando você se torna mãe não pode ficar cansada, não pode ficar doente, não pode sair. As pessoas entendem que quando você vira mãe deixa de ser mulher, e eu não acho que seja isso, você é humano, tem sentimentos, você chora, se apaixona, tem planos”, diz.

A gravidez de Karen, diferente de Jeanyne, aconteceu de forma inesperada e a jornalista nunca teve vontade de ser mãe. Aos 24 anos ela engravidou de um ex-namorado e só descobriu que carregava um bebê no ventre quando ele já tinha cinco meses. A notícia foi um choque. “Estava prestes a juntar meu dinheiro pra voltar para a Europa, já tinha morado na Irlanda por um ano. Tive que abrir mão dos meus planos, da minha carreira e de tudo o que estava planejado”, conta.

Karen relembra que quando descobriu a gravidez chegou a pensar em aborto, mas não tinha coragem e a opção logo foi descartada. “Aos poucos eu fui me acostumando com a ideia de ser mãe da Maria Flor, mas a maternidade até hoje não entrou em mim, eu não gosto de ser mãe”, relata.

Ela afirma que acha muito cansativo a obrigação de educar um filho. “As vezes eu queria ser madrinha da Maria, porque não tem obrigações de botar para dormir, chamar atenção, de fazer tarefa da escola, de colocar de castigo quando faz coisa errada. Eu não sou obrigada a querer ter alguém sob minha responsabilidade no mundo.”

Depressão pós-parto

Jeanyne sofreu de uma doença muito comum entre mulheres que acabaram de dar à luz, a depressão pós-parto. No Brasil, em cada quatro mulheres, mais de uma apresenta sintomas de depressão no período de 6 a 18 meses após o nascimento do bebê, o chamado puerpério. Os dados são de uma pesquisa realizada pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz).

Os sintomas do distúrbio, de acordo com a psicóloga Isabela Cotian, são tristeza, isolamento, falta de vontade de levantar da cama e perda do apetite. “Tudo isso acontece porque a queda hormonal é muito drástica. Em casos mais sérios é tentado o suicídio, e coisas mais graves em relação à criança”, explica Isabela.

Jeanyne não teve um acompanhamento psicológico durante a gravidez e nem após ganhar o bebê, mas a historiadora reconhece hoje que sofreu de depressão pós-parto. “Quando percebi que estava imersa em pensamentos horríveis tive medo de mim. Era como se ouvisse vozes sussurrando para fazer mal ao meu filho. Uma vez, quando voltava da consulta semanal no posto de saúde, vi um caixote de lixo e imaginei deixar ele lá e sair andando. Eram pensamentos tão pavorosos que eu tinha vontade de morrer antes de realizar qualquer um deles”, conta.

Os dados da depressão pós-parto no Brasil ultrapassaram a estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS) para países de baixa renda, que é de 19,8% de casos. Além disso, a pesquisa revelou que as mulheres atingidas pelo distúrbio têm em média 25,6 anos, são de cor parda e de baixa condição socioeconômica. Fatores como antecedentes de transtorno mental e hábitos não saudáveis contribuem para o aparecimento da doença.

O tratamento, segundo Isabela, é feito com medicamentos e, em alguns casos, com o afastamento da mãe e do filho. “Para tratar a depressão pós-parto é preciso que essa mulher tenha o apoio e o acompanhamento de alguém, porque a depressão vem dos sentimentos de impotência, solidão, incapacidade, não merecimento e desvalorização”, explica.

Convenção social

“Quando eu engravidei ninguém perguntou para mim se eu estava bem, se eu estava feliz, o que eu estava sentindo com aquilo. Era só parabéns, que feliz. Mas é porque as pessoas ainda têm muito esse romantismo de que mulher nasceu para ser mãe e quando ela é mãe não é mais nada, só mãe”, desabafa Karen.

Para a psicóloga Vanessa Queiroz, a maternidade perfeita é reforçada por convenções sociais e a decepção da mulher pode vir quando percebe que não funciona como sempre lhe foi imposto. “No geral, existe um estigma sobre a maternidade ser linda, maravilhosa, que a mulher vai sentir o bebê e se sentir especial durante a gestação. E sempre tem um tom meio sagrado em gerar e ter a criança. Por isso, muitas grávidas criam uma expectativa imensa em ter o filho, mas a prática acaba sendo diferente”, explica.

O Dia das Mães é a data mais representativa da maternidade. Para Jeanyne sempre foi uma época muito difícil. Ela tinha raiva que a parabenizassem, que a marcassem em fotos nas redes sociais e, principalmente, que perguntassem como estava sua vida após descobrir o que é o verdadeiro amor. “O tal amor incondicional materno não é uma verdade incontestável. É muito mais uma construção diária do que um toque de mágica. Há mulheres que sentem isso, e fico feliz por elas. Mas não há unanimidade neste cenário. Nem sempre, nem para todas, vale a pena ou compensa ser mãe”, diz.

Já Karen afirma que a opressão da maternidade sobre as mulheres é consequência da cobrança social em cima de uma mãe. Para ela, a exigência é tanta que não é possível nem mesmo curtir o momento com a criança. “Ser mãe é uma função como qualquer outra profissão, a diferença é que são 24 horas e você não tem como abrir mão dela, e se você faz isso é a pior pessoa do mundo para qualquer um.”

Diante da pressão social, a saída encontrada por Jeanyne foi criar um blog que serviria como um lugar para desabafar sobre o que sentia. E nele escreveu: “Eu odeio ser mãe, eu sabia que filho dava trabalho, que ia me deixar noites em claro, que ia me tirar (quase) toda a liberdade. Eu sabia. Mas depois de citarem o sofrimento materno, elas diziam no final que compensava. Todos os sacrifícios compensavam. Ninguém nunca havia se arrependido de ser mãe, por que eu haveria? No início me achei um monstro, pensava que se eu não conseguisse sentir aquele amor arrebatador pelo meu filho então eu era um lixo, não valia nada. E, com culpa, admiti em silêncio que gostava mais do meu marido do que do meu próprio filho.”

A historiadora ainda criou um grupo secreto no Facebook chamado “Eu odeio ser mãe”, que contava com cerca de 30 participantes. O espaço digital era usado pelas mulheres para falarem sobre os sofrimentos da maternidade sem estarem sujeitas aos julgamentos e preconceitos. Jeanyne saiu do grupo no ano passado porque excluiu o blog e um era vinculado ao outro.

Para Karen, existe uma ligação direta entre o machismo e a imagem social da maternidade perfeita. “Não é o machismo só do homem, é um machismo arraigado. Muitas mulheres também pensam assim porque era comum elas largarem o emprego para cuidar dos filhos. Desconstruir isso é muito difícil, ainda mais quando você tenta falar e as pessoas tentam te reprimir. Elas não conseguem desligar o fato de você não gostar da maternidade e amar seu filho”, explica.

A jornalista, que hoje está solteira, desabafa: “O que eu quero é que as pessoas entendam que eu tenho o direito de sofrer, de não gostar de acordar cedo porque minha filha tem aula 6 horas da manhã, tenho direito de não gostar de trocar uma fralda”.

Preconceito

Em janeiro de 2016, a dona de casa Juliana Reis teve sua conta no Facebook bloqueada após rejeitar o Desafio da Maternidade. A corrente na rede social incentivava mães a postarem fotos com seus filhos para demonstrar a beleza da relação. Juliana não aceitou o desafio e aproveitou a oportunidade para fazer um protesto publicando imagens da rotina cansativa que envolve o papel da maternidade. Junto das fotos ela confessou: “Eu amo meu filho, mas odeio ser mãe”.

A publicação teve uma grande repercussão e muitos comentários, alguns de apoio, mas a maioria de críticas e ofensas a Juliana. No final do mesmo dia, a conta da dona de casa foi denunciada para o Facebook e, por fim, bloqueada.

O episódio marca o preconceito vivido por mães que contrariam o ideal romantizado da maternidade. Karen Cardoso já passou por algo parecido e conta que as pessoas não estão abertas a entender o lado delas. “Em publicações no Face, as pessoas são cruéis nos comentários, são coisas pesadas porque elas não estão dispostas a ouvir que você não gosta da maternidade. Comentaram [em uma publicação feita por ela] que a criança não pediu para nascer, ‘você abriu a perna porque você quis’, e não tem nada a ver uma coisa com a outra”, relata.

A jornalista diz ainda que por causa de sua opinião as pessoas têm uma visão deturpada do relacionado dela com a filha. “O que eu mais ouvi foi ‘nossa, coitada dessa menina’. Coitada por quê? Minha filha estuda em escola boa, tem boa alimentação, vai ao médico, tem boas condições de vida, tem amor dos avós, da mãe, da família”, revolta-se.

Jeanyne afirma que sofreu o mesmo preconceito, e comenta que apesar das críticas, muitas mulheres não fazem por seus filho o sacrifício que ela faz por Fabian. “As pessoas julgam e desejam coisas terríveis para nós e, no entanto, conheço muitas histórias de supermães de Facebook que não fizeram as opções que fiz nem se sacrificaram como eu, uma mãe que fica quase 24 horas com o filho, mas ainda se acham no direito de criticar e insultar”, conta.

Apesar da repressão, a historiadora acredita que atualmente a visão sobre a maternidade está sendo cada vez menos romantizada e que o preconceito tem diminuído em comparação há sete anos, quando deu à luz e se abriu sobre o assunto. “O feminismo abraçou mais essa luta, mães puderam se expor e encontrar acolhimento”, explica. Ela atualmente vive apenas com o filho, o marido está trabalhando em outra região da França. A expectativa é que dentro de quatro meses a família volte a morar junto.

Amor pelos filhos

“Eu não gosto da função mãe, mas eu amo a Maria Flor mais que tudo. A partir do momento que eu aceitei minha gravidez, eu sempre amei minha filha. Não existe mais não ter Maria na minha vida, ela é o centro de tudo, sem ela eu não vivo”, afirma Karen.

Segundo a psicóloga Vanessa Queiroz, não gostar de ser mãe não faz com que as mulheres não amem seus filhos. “Uma coisa é você amar aquele ser que está ali e saiu de você, outra coisa é você gostar de exercer a maternidade, são duas coisas distintas.”

A opinião pouco comum sobre os desprazeres da maternidade também não influencia nos cuidados que a mãe terá com a criança. Quando Fabian nasceu, Jeanyne deixou o emprego e passou um ano em casa para dar a atenção e os cuidados que acreditava que o filho não receberia em uma creche. “Quando eu digo que odeio ser mãe, não quer dizer que eu seja negligente. Eu cuido dele, leio, brinco, educo, xingo, me preocupo com o desenvolvimento na escola, levo para passear como qualquer mãe”, explica.

A historiadora acredita que a visão romantizada da maternidade contribui para que muitas mulheres recém-mães enfrentem problemas psicológicos. “Eu acredito no amor, o amor falível e humano como nós somos. Não esse suprassumo do sentimento que a mídia vende e que a sociedade nos impõe. Isso é que tinha que ser desconstruído. Tem muita mãe que entra em depressão porque não consegue sentir isso”, finaliza.

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