‘O senhor Hitler entrou hoje à noite em Viena…’
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Com essas palavras, dois dias após a anexação da Áustria pela Alemanha, o locutor Manuel Braune, conhecido como "Aymberê", marcava a primeira transmissão em rádio da BBC em português para o Brasil há 80 anos.
A transmissão ocorreu na noite de 14 de março de 1938 nos estúdios de Broadcasting House, perto da estação de Oxford Circus, no centro de Londres, em noite de gala com música de orquestra e a presença de convidados como o embaixador brasileiro no Reino Unido, Raul Régis de Oliveira.
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"Era um período volátil, à beira da Segunda Guerra Mundial" explica Robert Seatter, chefe do Departamento de História da BBC. "O governo britânico e a BBC se deram conta de que a Alemanha estava fazendo propaganda (por rádio ondas curtas) em várias regiões, e enviaram um representante, Felix Greene – primo do escritor Graham Greene – para verificar a situação na América do Sul em 1937."
"Quando voltou, Greene relatou ter constatado que essa propaganda era altamente danosa, orquestrada com alto grau de destreza, organização e recursos. Greene diz que ‘inúmeros brasileiros, argentinos e chilenos, em posições de influência e que gostam de nosso país, me disseram ser difícil observar de braços cruzados os efeitos dessas atividades sem que a Grã-Bretanha mexa um dedo sequer para proteger seu nome e seus interesses’."
A resposta britânica? "Um contra-ataque com notícias e informações claras e objetivas", acrescentou Seatter.
O então diretor-geral da BBC, John Reith, deixou clara a estratégia de combater a propaganda com informação imparcial, afirmando, na época, "que o serviço de notícias da BBC, em qualquer língua, deve ser baseado na verdade. As pessoas devem sentir que uma notícia transmitida pela BBC é correta".
Inicialmente, durante a guerra que estourou em setembro de 1939, as notícias que os brasileiros ouviam pela BBC eram traduzidas do inglês.
"A BBC trouxe maior equilíbrio. Falava quando um navio inglês era afundado", diz Rose Esquenazi, professora da PUC-Rio especializada em História do Rádio e TV, à BBC Brasil. "As pessoas sabiam que havia a censura do Estado Novo. Se você ouvia em outra rádio, a notícia seria mais parcial. Os brasileiros sentiam que o noticiário da BBC era mais isento."
"Mudamos muito nos últimos anos, mas, olhando nossa própria história, é fantástico constatar que os princípios que nos moviam há 80 anos são os mesmos que guiam nosso Jornalismo hoje. O compromisso com a independência e a imparcialidade continuam sendo a base do nosso sucesso", diz Silvia Salek, diretora de redação da BBC Brasil, que produz conteúdo digital em português para uma audiência que saltou de cerca de 5 milhões de usuários únicos para mais de 20 milhões nos últimos cinco anos.
Bombas sobre Londres
O período da Segunda Guerra foi um dos mais importantes nesses 80 anos (veja ao fim do texto uma linha do tempo com áudios marcantes dos arquivos da BBC Brasil) – e os jornalistas do Serviço Brasileiro estavam literalmente no centro da ação. A locutora Rachel Braune conta em um programa de arquivo que a maioria dos brasileiros tinha deixado Londres após a declaração de guerra à Alemanha em 1939 – "só tinham ficado os funcionários da Embaixada e do Consulado e os locutores da BBC".
"Foram essas pessoas que fui encontrar no coquetel de 7 de setembro de 1940 na Embaixada Brasileira", conta ela.
"Assim que o champanhe começou a ser servido, não houve tempo de levá-lo aos lábios. Explodiram as sirenes de alerta."
Era a primeira noite da blitz, a famigerada campanha de bombardeios alemães sobre a Grã-Bretanha, que obrigou os convidados da Embaixada a descer ao abrigo antiaéreo no porão "com as taças de champanhe na mão".
As chuvas de bombas alemãs acabariam obrigando o próprio Serviço Latino-americano a se mudar para fora de Londres, um mês antes da sede da BBC ser atingida por uma bomba alemã, matando sete funcionários.
Foi nesse período que a base das transmissões foi transferida para Aldenham House, uma mansão no campo que pertenceu a uma família aristocrática antes de abrigar o Serviço Mundial durante a guerra. Ela inspirou também o livro Memórias de Aldenham House, de um dos jornalistas que passaram pela equipe brasileira, o escritor Antônio Callado.
No Brasil, o interesse aumentou ainda mais com o envio dos pracinhas à Itália, em julho de 1944. E o noticiário que vinha em português de Londres, toda noite, em horário nobre, passou a ser o único no país a trazer as vozes dos soldados brasileiros na frente de batalha.
Os vozes dos locutores brasileiros da BBC nessa época se tornaram famosas, em particular a de Manuel Braune, o "Aymberê", conhecido também por narrar os jornais cinematográficos da época da guerra – quem ia ao cinema encontrava com frequência, antes do início do filme, um resumo da guerra produzido pela BBC e narrado em português.
Entre os correspondentes de guerra brasileiros cobrindo as atividades da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Itália, o anglo-gaúcho Francis Hallawell, o "Chico da BBC", era o único equipado com um aparelho portátil pioneiro que permitia a gravação de áudios em disco.
O resgate das gravações colhidas por Hallawell – registrando desde eventos do cotidiano nos acampamentos, como a distribuição de cartas e a "hora da boia", até visitas a feridos em um hospital e sambas compostos e tocados pelos pracinhas – faz parte do documentário Os Sons Esquecidos dos Pracinhas, que a BBC Brasil publica nesta quarta-feira.
"É um material fantástico… um estímulo a outros pesquisadores", diz o historiador Francisco César Ferraz, da Universidade Estadual de Londrina (UEL), que há vários anos pesquisa a participação dos soldados brasileiros na Segunda Guerra.
Ameaça de cortes
Nos anos 1950, a BBC fechou vários serviços dirigidos a países europeus – como Portugal, Noruega, Dinamarca e Holanda. Mais tarde, com a democratização dos antigos países comunistas após a queda do Muro de Berlim, já não se via mais razões para manter serviços como, por exemplo, o croata, o romeno, o búlgaro e o polonês.
A Seção Brasileira escapou de várias ameaças de cortes, ou por ter sua relevância reiterada por acontecimentos políticos no país ou, mais tarde, por se reinventar e conquistar um espaço próprio no concorrido mercado nacional de jornalismo.
Durante o regime militar, em meio à censura e ao AI-5, a BBC Brasil era uma das poucas emissoras a divulgar relatórios denunciando tortura e morte de presos políticos e a abrir seus microfones a críticos da ditadura.
Em 2000, a BBC Brasil deu um passo para uma atuação digital por meio do seu site, o www.bbcbrasil.com, e de sites parceiros (UOL, G1, Terra, MSN, R7, Folha). Tem também um boletim de notícias, o Dois Minutos Pelo Mundo, transmitido de Londres para o Brasil pela rádio CBN.
Outra parte mais recente do trabalho da BBC Brasil é a cobertura do Brasil para o público estrangeiro em texto, rádio e TV. "Vão desde entradas ao vivo quando o Brasil vira notícia no mundo até reportagens especiais nas mais diferentes áreas", diz Silvia Salek.
"O novo público que conquistamos no Brasil, principalmente nos últimos cinco anos, mostra o espaço que existe para um jornalismo de qualidade, equilibrado, que busca trazer o contexto e o porquê das notícias. É um enorme orgulho fazer parte de uma equipe que faz do Brasil o país com a maior audiência digital do Serviço Mundial", afirma, acrescentando que 2018 trará novidades à oferta em português, como um projeto de notícia ilustrada e uma oferta cada vez maior de vídeos.
Abaixo, uma linha do tempo com áudios que marcaram a história da BBC Brasil:
*Com agradecimentos especiais a Laurindo Lalo Leal Filho, pela vasta pesquisa que deu origem ao livro ‘Vozes de Londres – Memórias Brasileiras da BBC’, e à Embaixada do Brasil em Londres, que guardou parte dos arquivos sobre os pracinhas.
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