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As respostas da Justiça aos homens que pedem prisão domiciliar para cuidar dos filhos

Segundo entendimento da lei por cortes superiores do país, mães e pais têm tratamento diferente na substituição da prisão preventiva pela domiciliar quando há filhos envolvidos.

O Supremo Tribunal Federal decidiu, na última semana, que mulheres gestantes ou mães de crianças com até 12 anos em prisão provisória têm o direito de cumprir a medida em regime domiciliar.

No que diz respeito a pais que estão presos, embora não haja dados sobre números de demandas, a Justiça já registra alguns pedidos do tipo por homens. Em 2017, porém, outra corte, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), definiu que o tratamento deve ser diferente para eles e elas.

Em abril daquele ano, a Sexta Turma do STJ se debruçou sobre o pedido de habeas corpus de um advogado do Estado de São Paulo preso preventivamente com a acusação de participação em fraude a licitação. Sua defesa pedia prisão domiciliar com o argumento de que o filho do réu, um menino de cinco anos, passou a apresentar transtornos psicológicos severos desde que o pai foi preso.

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Os ministros da corte reforçaram a orientação dada pelo Estatuto da Primeira Infância que, ao mesmo tempo que permite a substituição da prisão preventiva pela domiciliar para gestantes e mulheres com filhos de até 12 anos, diz que a alteração só é possível para o homem "caso (ele) seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 anos de idade incompletos". O pedido do pai em análise foi negado.

"Examinando a decisão judicial atacada, vê-se que não admitiu o magistrado como comprovada a condição de único responsável, ou mesmo de ser imprescindível aos cuidados do filho menor. Ao contrário, afirmou que ‘na hipótese em tela, a presença do requerente no lar somente teria o condão de auxiliar a esposa com os cuidados com o filho, pois, segundo mencionado, ela encontra-se dividida entre os afazeres de casa, sustento do lar e cuidados com o filho’. Assim, justificada a não incidência do requisito legal", afirmou no julgamento o relator do caso, o ministro Nefi Cordeiro.

Pais que voltam para casa

Há, no entanto, casos bem-sucedidos que levaram pais presos preventivamente de volta às suas casas com o argumento de cuidado com os filhos.

Em fevereiro deste ano, um juiz do Ceará concedeu prisão domiciliar a um homem, acusado de extorsão, que argumentou ser o único responsável pela filha de quatro anos, uma vez que a esposa tem uma jornada exaustiva de trabalho.

"Embora a mãe hoje se encontre com a criança, na prática, sua exaustiva jornada de trabalho praticamente a impede de empregar os cuidados necessários à filha, motivo pelo qual fica demonstrada a imprescindibilidade paterna nos cuidados da criança. Ademais, o réu não possui maus antecedentes, tem residência fixa e tem problema de saúde que exige o uso de marcapasso", explicou em sua decisão o juiz Abraão Tiago Costa e Melo.

Em 2015, a Defensoria Pública do Paraná obteve condição semelhante para um réu pai de uma menina de seis anos cuja mãe passava por tratamento médico intenso por causa de um câncer de mama.

César Augusto Moreira, advogado que levou ao STJ o pedido de habeas corpus negado a um pai em 2017, lamentou à BBC Brasil que a Justiça tenha porém, por vezes, uma interpretação muito restrita para definir se um pai é o único responsável pelos cuidados de uma criança. É, segundo ele, uma avaliação injusta que recaiu sobre o seu cliente e seus dois filhos pequenos – hoje, o réu foi condenado e cumpre pena em regime semiaberto.

"Se o pai é o único responsável pelos cuidados dos filhos vai muito da interpretação do juiz. Nossa Justiça ainda vincula muito à mulher o papel do provimento emocional e da educação. É cultural", diz Moreira.

"Os filhos do meu cliente eram não só financeiramente dependentes dele, mas tinham uma ligação afetiva muito forte. O impacto foi total e absoluto nos filhos do réu", acrescenta. "A lei é destinada a proteger a infância. Portanto, ela existe em benefício da criança e não do réu. Mas essa situação não sensibilizou o Judiciário (no caso em questão), ainda que se tratasse de um crime não violento e de uma prisão cautelar. A Constituição diz que nenhum pena deverá passar da pessoa do condenado."

Segundo Nathalie Fragoso, advogada do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos – um dos impetrantes do habeas corpus coletivo para mulheres obtido na semana passada -, se antes da decisão do STF muitos magistrados não concediam o direito à prisão domiciliar previsto na lei para as mulheres, tudo indica que no caso dos homens tal benefício seja muito mais difícil de ser alcançado.

Mas para ela, ainda que a Constituição e as leis definam a igualdade entre homens e mulheres, inclusive nos "direitos e deveres referentes à sociedade conjugal", o tratamento diferenciado no caso da conversão da prisão preventiva para domiciliar atende a uma realidade de gênero também distinta.

"É um diagnóstico da divisão de desigual de responsabilidades. Vemos um impacto desproporcional do encarceramento das mulheres não só para as próprias detentas, mas para seus filhos, sua família a e para a sociedade como um todo. Não são desdobramentos tão comuns no caso dos homens", defende ela.

"Nossa sociedade distribui de maneira desigual os cuidados domésticos com a família. Por isso, a privação de liberdade de uma mulher compromete uma comunidade inteira. Homens e mulheres experimentam a privação da liberdade de forma diferente, e no caso delas, o gênero significa mais vulnerabilidade."

Milhões de crianças sem pai na certidão

A advogada cita o volume de famílias chefiadas por mulheres como uma das evidências do desequilíbrio no cuidado com a família.

Segundo um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 1995, 23% dos lares brasileiros eram chefiados por mulheres; em 2015, o percentual passou para 40%. Em 34% destes arranjos familiares, há a presença de um cônjuge – mas o instituto destaca o "elevado o patamar de famílias em que as mulheres não têm cônjuges e têm filhos".

Pedro Hartung, coordenador do programa Prioridade Absoluta, do Instituto Alana, que tem o objetivo de assegurar os direitos das crianças, concorda que o tratamento diferenciado dado pela lei no caso da prisão domiciliar corresponde a uma realidade desigual.

"Temos no Brasil 5,5 milhões de crianças sem o nome do pai na certidão de nascimento. É assustador. Lutamos para que isso possa mudar, mas hoje a desigualdade pesa sobre a mulher. Esperamos que esta realidade mude e que a lei possa acompanhar isto", defende.

Ele, como Fragoso, atenta porém para outros aspectos do sistema jurídico e prisional que poderiam, por meio da convivência familiar, melhorar a situação de entes encarcerados – sejam elas homens e mulheres – e suas crianças. É o caso de revistas vexatórias, procedimentos levados à cabo nas prisões sob o argumento da garantia da segurança que muitas vezes submetem visitantes a inspeções em suas partes íntimas, afirma.

"Hoje, as prisões são ambientes vexatórios e de insalubridade. Mas os espaços devem ser acolhedores para a condição peculiar da criança: ela é mais sensível às condições externas, do ambiente", diz Hartung.

"Sem dúvida, é um direito da criança a convivência familiar e comunitária, incluindo a família estendida, como avós e outros membros da família além da mãe e do pai. Sempre que possível, incluindo no caso das prisões, é muito importante facilitar o contato com diferentes atores da vida da criança para um desenvolvimento sadio completo."

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