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Civis lutam para sobreviver em meio a bombardeios intensos na Síria

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"Estamos vivendo em um porão, embaixo de uma casa parcialmente destruída", conta Asia, uma estudante de 28 anos e mãe de três crianças, cujo marido foi morto em um ataque realizado pelo governo sírio enquanto estava a caminho do trabalho.

Asia e sua família – ou que restou dela – vivem em Ghouta Oriental, ao leste de Damasco, a capital da Síria, sem comida ou saneamento.

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Ali, moram cerca de 400 mil pessoas.

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Desde domingo, a área, considerada uma das últimas controladas pelos rebeldes, vem sendo intensamente bombardeada.

Mulheres e crianças são as principais vítimas.

Segundo a imprensa estatal, uma grande operação militar estaria prestes a ser iniciada para expulsar, de uma vez por todas, as facções rebeldes de seu último bastião.

O Observatório Sírio de Direitos Humanos, organização de monitoramento sediada no Reino Unido que faz oposição ao presidente Bashar al-Assad, diz que o governo e seus aliados realizaram mais de 1.290 ataques aéreos em Ghouta Oriental e dispararam 6.190 foguetes e granadas na região desde meados de novembro, quando o conflito recrudesceu.

Entre domingo e quarta-feira, foram registrados aproximadamente 420 ataques aéreos e 140 bombas de barril (artefato explosivo improvisado consistindo em barris cheios de explosivos) foram lançadas por helicópteros.

Especialistas em crimes de guerra da ONU também estão investigando vários relatos de foguetes supostamente contendo cloro que está sendo disparados em Ghouta Oriental neste ano.

Nos últimos três meses, segundo dados do Observatório Sírio de Direitos Humanos, mais de 1.070 pessoas, incluindo várias centenas de crianças e mulheres, foram mortas enquanto outras 3.900 ficaram feridas.

Mouayad, de 29 anos, mãe de duas crianças pequenas, diz à BBC: "Você não pode imaginar o quão difícil é viver aqui".

"Para que essas crianças vivam sua infância em segurança, você tem que mantê-las no porão. Não podem sair, jogar no jardim ou qualquer outra coisa", conta.

A análise de imagens de satélite por especialistas da ONU em dezembro identificou aproximadamente 3.853 estruturas destruídas, 5.141 gravemente danificadas e 3.547 parcialmente avariadas nas partes ocidentais mais densamente povoadas do enclave.

No subúrbio de Ain Tarma, onde se estima que 17 mil a 20 mil civis vivam, 71% das estruturas estão danificadas ou destruídas, segundo o levantamento. Em Jobar, restrito aos rebeldes, a taxa é de 91%.

Ghouta é o nome dado ao cinturão agrícola que corre ao redor do leste, sul e oeste de Damasco. Inclui os subúrbios da capital, bem como uma série de cidades e aldeias periféricas.

As pessoas que viviam em Ghouta estavam entre aquelas que participaram da insurreição pacífica pró-democracia contra o presidente Bashar al-Assad em 2011. Quando a revolta evoluiu para uma guerra civil, a região tornou-se uma fortaleza rebelde.

Em 2012, as forças do governo começaram a sitiar partes de Ghouta. No ano seguinte, foram acusadas pelo Ocidente de ter usado o gás sarin em várias áreas rebeldes, matando centenas de pessoas.

Assad negou veementemente a acusação e culpou combatentes rebeldes.

À medida que ganharam vantagem na guerra nos últimos três anos, o presidente sírio e seus aliados, Rússia e Irã, se focaram a recuperar o controle de Ghouta. Os cercos foram apertados, as entregas de ajuda humanitária, limitadas e o bombardeio, intensificado.

A ONU expressou indignação com as chamadas táticas de "fome e rendição", mas o governo sírio não cedeu.

No final de 2016, os moradores das últimas cidades rebeldes de Ghouta Ocidental se renderam. No entanto, o mesmo não aconteceu com Ghouta Oriental.

Poucos alimentos e preços elevados

Muitas pessoas conseguiram obter alimentos essenciais por meio de uma rede de túneis informal que conecta Ghouta Oriental com os distritos controlados pelo governo vizinhos a Damasco, bem como por comerciantes que fizeram acordos com tropas.

Mas, no ano passado, o governo fechou muitos túneis e comércio ficou limitado. De setembro até o final de novembro, nenhum veículo comercial foi autorizado a entrar em Ghouta Oriental, segundo a Reach Initiative (iniciativa conjunta entre duas ONGs e um dos braços da ONU), que mantém contato com moradores para coletar informações humanitárias.

Entregas limitadas foram retomadas em dezembro, mas as restrições levaram ao esgotamento dos estoques de alimentos e preços extremamente inflacionados.

As organizações humanitárias foram impedidas pelo governo de entregar ajuda em dezembro e janeiro, apesar de um comboio que transportava assistência para 7,2 mil pessoas ter chegado a Nashabiya em meados de fevereiro.

"Existem alguns negociantes. Eles fornecem farinha, arroz e açúcar a Ghouta", diz Mouayad. "Mas até mesmo os negociantes…são impedidos agora de entrar ou sair".

Atualmente, um pacote de pão custa cerca de 22 vezes a média nacional, de acordo com a ONU. As taxas de desnutrição atingiram níveis sem precedentes, com 11,9% das crianças com menos de cinco anos intensamente malnutridas.

Os moradores disseram à Reach Iniatiative que passaram dias sem comer, consumiram plantas não comestíveis ou reduziram o tamanho das refeições devido à falta de acesso a alimentos.

‘Infelizmente, não tenho o suficiente’

"Para o meu filho de três anos, faço pão. Para minha filha, busco uma vaca para tirar leite", diz Mouayad. "Sou estudada. Posso ganhar dinheiro para alimentar meus filhos. Outras pessoas, outras famílias, não podem fazer isso".

Mesmo assim, Mouayad explicou que tinha apenas dinheiro suficiente para pagar alimentos para sua própria família por alguns dias a mais. Ela diz não saber o que fazer depois que suas economias acabarem.

Asia não tem emprego e não pode se dar ao luxo de comprar muita comida quando sai de casa. Seu pai e seu irmão estão mortos.

"Recebo dinheiro para os meus filhos de uma organização que ajuda órfãos, mas, infelizmente, não tenho o suficiente", diz ela.

O acesso à saúde também foi gravemente afetado pelo cerco e bombardeio.

No mês passado, um total de 29 centros de saúde, hospitais, pontos informais de atendimento de emergência e clínicas móveis ainda estava em operação, informou a Reach Initiative.

Ambulâncias ‘intencionalmente’ atacadas

Mas, desde domingo à noite, 14 instalações médicas foram retiradas de serviço como resultado dos ataques do governo, segundo Ahmad Dbis, da União de Organizações de Assistência e Cuidados Médicos (UOSSM), que opera hospitais na região.

Mais de 10 médicos e voluntários também foram mortos e outros 20 ficaram feridos.

Segundo ele, médicos estavam sendo forçados a dormir nos hospitais porque era muito perigoso sair. As ambulâncias também não conseguiam transportar pacientes porque estavam sendo "intencionalmente" atacadas por aeronaves, acrescentou.

Dbis lembrou a última conversa que teve com seu amigo, o fotógrafo da UOSSM Abdoulrahman Ismael, na terça-feira, pouco antes de ele ser morto em um ataque aéreo.

"Ouvi o som das bombas. Perguntei a ele o que era aquilo. Ele disse, então, que havia bombas de barril a 200 metros. Perguntei se estava em um lugar seguro", conta Dbis.

"Ele disse: ‘Sim, estou em um centro médico em Hamouria. Acho que estou seguro".

Quatro minutos depois, não ouviu mais a voz do amigo.

‘Monstruosa campanha de aniquilação’

Dbis diz que a situação era tão ruim em Ghouta Oriental que os médicos estavam apenas tratando casos de emergência. Eles também precisam lidar com a falta de material médico, incluindo anestesia, antibióticos, bolsas de transfusão de sangue e bandagens limpas.

Centenas de pacientes gravemente doentes e feridos também precisam ser evacuados com urgência. Vinte e nove foram evacuados no final de dezembro, mas a ONU disse que outros 22 morreram enquanto aguardavam permissão para sair.

O Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Zeid Raad Al Hussein, pediu à comunidade internacional para tomar medidas de modo a impedir o que chamou de "monstruosa campanha de aniquilação".

O governo e seus aliados negaram atacar civis e rejeitaram os pedidos de cessar-fogo ou trégua humanitária.

Eles dizem que estão tentando liberar Ghouta Oriental dos "terroristas" e parar ataques de foguete em áreas vizinhas controladas pelo governo, que haviam matado 113 civis desde meados de novembro.

Isso gerou um temor de que uma batalha sangrenta como a que se viu em Aleppo Oriental no final de 2016 possa eclodir, quando rebeldes e civis foram fortemente bombardeados.

"Espero que possamos deixar Ghouta Oriental porque não podemos suportar mais nada", afirmou Asia.

Mouayad disse que tentou escapar do cerco há cinco anos, mas não conseguiu.

"Quero a paz para o meu país. Quero criar meus filhos de uma maneira respeitosa. Quero que eles vivam em paz sempre que possível. Quero segurança para meus filhos", conclui.

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