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“Não dá para culpar militares se intervenção no Rio der errado”, diz ministra do Superior Tribunal Militar

Maria Elizabeth Rocha afirma que Forças Armadas ‘cumprem ordens’ do poder civil e que ‘é de se estranhar’ que o plano de intervenção não tenha sido gestado antes pelo governo federal diante da ‘calamitosa’ situação no Estado.

A intervenção federal no Rio de Janeiro – que deve durar pelo menos até dezembro de 2018 – deixa as Forças Armadas pela primeira vez no comando total da segurança de um Estado brasileiro. Mas para a ministra do Supremo Tribunal Militar Maria Elizabeth Rocha, os militares não devem ser culpabilizados caso a estratégia não tenha o efeito desejado.

"Os militares estão subordinados ao poder civil. Receberam uma missão e têm que cumpri-la na melhor forma. Mas é preciso saber exatamente qual a missão", disse em entrevista por telefone à BBC Brasil.

Primeira e única mulher a ser nomeada para a corte mais antiga do país – e a presidi-la -, a juíza mineira critica o uso das Forças Armadas para a segurança pública e diz que papel de soldados no Rio não deve ser "sair com um fuzil no meio da rua e barbarizar o cidadão".

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Rocha também defende que a possibilidade de possíveis abusos cometidos na intervenção serem julgados por um tribunal militar não deve preocupar a população.

"A Justiça Militar é uma Justiça civil também. E é uma Justiça muito dura, muito rigorosa", afirma.

A magistrada é uma das cinco civis entre os 15 ministros da corte penal, que julga cerca de 1,2 mil processos por ano.

Confira os principais trechos da entrevista:

BBC Brasil – Você foi a primeira mulher em 205 anos a tornar-se juíza do Superior Tribunal Militar e também a primeira a presidi-lo. Qual o impacto que você acha que teve no STM?

Maria Elizabeth Rocha – Acho que minha principal contribuição foi levar o olhar da diferença e da alteridade para um plenário que é predominantemente masculino – como o ambiente da caserna também é.

A importância que tenho é levar minhas decisões jurídicas, que são técnicas, com meu olhar de mulher, que eu faço questão que prevaleça. Afinal, fui escolhida para fazer a diferença numa sociedade que ainda é sexista.

Também pesa o fato de eu ser uma civil. Não que seja melhor ou pior, mas é um olhar diferente. Temos um tribunal com magistrados civis e militares. O que eu acho proveitoso nessa composição é que os militares trazem para nós a experiência que têm da caserna e nós trazemos o nosso saber jurídico.

BBC Brasil – Qual é a principal dificuldade que você enfrenta como juíza civil em um tribunal militar?

Rocha – Nosso código é de 1969, e a Constituição é de 1988. Eu acho que há vários dispositivos do código militar que foram revogados pela Constituição de 88 e ainda continuam em vigor, porque não existe uma reforma legislativa eficiente para se expurgar dessa legislação uma série de princípios e de normas anacrônicas. E não se tem muita vontade, no Congresso, de discutir o Direito Militar.

O Direito Militar, por exemplo, também não concede a progressão de regime – o condenado tem que cumprir a pena integral em regime fechado, não interessa o tipo de crime. Mas se até para os crimes hediondos o Supremo entendeu que deve existir a progressão de regime, porque no Direito Militar não teria?

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A questão dos direitos sexuais também está muito defasada. O estupro, que hoje adquiriu uma definição muito mais ampla que apenas a conjunção carnal entre homem e mulher, ainda é tipificado no nosso código dessa forma antiga. Até o ano passado, a Lei Maria da Penha era inaplicável à Justiça Militar, porque ela mescla questões cíveis – como as medidas protetivas – com questões penais.

Hoje já podemos julgar agressões domésticas quando praticadas por militar contra militar, mas não podemos aplicar as medidas protetivas, que são de natureza cível, já que somos apenas um tribunal penal. Então, em casos como esses, a mulher militar fica desprotegida.

BBC Brasil – As Forças Armadas são consideradas um meio ainda conservador e machista. No entanto, você encampou a defesa dos direitos das mulheres e dos homossexuais desde que ingressou no STM. Acredita ter conseguido avançar no tema?

Rocha – Acho que os avanços são significativos. Hoje a antiga política norte-americana do "Don’t ask, don’t tell" ("Não pergunte, não conte", em tradução livre) que predominava nas Forças Armadas brasileiras acabou. A pessoa tem direito a assumir a sua identidade e a não ser perseguida por causa disso.

Eu acho que quando eu iniciei essas discussões, há 11 anos, ainda existia uma resistência muito grande. Era uma resistência silenciosa, que é o pior tipo, porque você não tem como debater.

Mas eu me lembro que julguei o caso de um oficial que era homossexual assumido e teve um problema sério. Antigamente, eles eram excluídos da Força, perdiam o posto e a patente por "indignidade". Eu fiz um longo voto, e não consegui mantê-lo na ativa, Mas ele não foi excluído, foi colocado na reserva compulsória remunerada.

Eu me lembro que fui acompanhada no meu voto vencido por um almirante. Um só. Mas considerei aquilo uma vitória. Os direitos civis são conquistados com muita luta. Ninguém te dá o direito de presente, você tem que lutar por ele.

BBC Brasil – O que exatamente a Justiça Militar pode julgar?

Rocha – O artigo 9º do Código Penal Militar especifica todas as situações em que o crime é de natureza militar. Falando em termos gerais, os crimes militares são aqueles que ofendem a administração militar e as Forças Armadas mesmo se aplicadas por civis. Por isso, nossa competência abarca não só militares contra militares ou militares contra civis, mas até civis contra civis.

BBC Brasil – Como vê a intervenção militar no Rio de Janeiro?

Rocha – Eu não vou discutir se a decisão política do Poder Executivo foi acertada ou não. Ela foi feita dentro dos parâmetros constitucionais – porque a nossa Constituição prevê e autoriza a intervenção federal e, como cidadã, espero que ela dê resultado.

Mas, para isso, precisa haver um plano de intervenção que não seja simplesmente colocar as Forças Armadas nas ruas para combater a criminalidade. É preciso que haja comunicação entre as polícias e as Forças Armadas para conseguir salvar o Rio de Janeiro.

BBC Brasil – Alguns especialistas criticaram a falta de estratégias prévias à decisão da intervenção militar. O próprio general Braga Netto, nomeado como interventor, disse, ao assumir o posto, que agora começará o planejamento. A decisão foi apressada, em sua opinião?

Rocha – Eu acho que a situação no Rio de Janeiro é tão calamitosa que esse plano de intervenção já deveria estar sendo gestado há algum tempo no governo federal, se é que a intervenção é a melhor resposta. É de se estranhar que ainda não haja plano.

Como todo cidadão brasileiro, eu estou aguardando pra ver. Vai ter que haver investimento, capacitação, porque a segurança pública acabou no Rio. Só acho que depois não dá para culpar os militares se não der certo. Os militares estão subordinados ao poder civil.

BBC Brasil – Mas o interventor nomeado para o Rio é um militar. Não vai ser difícil para as pessoas não culparem os militares se algo der errado?

Rocha – Pois é. Mas o militar cumpre ordens. Esse plano de intervenção tem que vir de cima para baixo. Eles estão lá para cumprir a missão, mas é preciso dizer especificamente qual é a missão. Porque a missão não é sair com um fuzil no meio da rua e barbarizar o cidadão, não é sair com o fuzil e subir o morro.

Eu sempre fui contra as GLO (operações de Garantia da Lei e da Ordem, que permitem a atuação das Forças Armadas na segurança pública, excepcionalmente, em momentos de grave perturbação da ordem).

Sempre achei que o papel das Forças Armadas não é o de capitão do mato, de fazer segurança pública. As Forças Armadas têm uma missão completamente diferente, estão lidando com a soberania do Estado. Defendem fronteiras, trabalham em missões humanitárias, na defesa da nossa biodiversidade.

O Brasil está caminhando como o México, que colocou todos os seus militares para fazer papel de polícia. Isso me preocupa. Primeiro porque estou vendo que os militares estão sendo usados politicamente, o que é um problema. E depois porque os militares foram treinados para lidar com a guerra. Isso é diferente do papel da polícia, que tem uma interface comunitária, de tentar apaziguar conflitos.

BBC Brasil – Críticos também dizem quem uma intervenção federal de natureza militar prejudicando a execução de outras atividades de responsabilidade das Forças Armadas. Isso pode realmente acontecer?

Rocha – Com certeza. Os contingentes militares hoje não são muito grandes, sobretudo se considerarmos a dimensão do Brasil, as Forças Armadas não estão aparelhadas como deveriam, porque os cortes orçamentários são imensos, e ainda vão perder grande parte dos seus homens, que vão para uma missão que não é exatamente aquela para a qual eles foram preparados.

O policiamento de fronteiras pode ser prejudicado, mas é por isso que precisamos ver o plano de ação – para saber quais batalhões serão deslocados, quais militares vão participar da operação, de onde vai sair o dinheiro, etc.

O gesto simbólico de transferir a responsabilidade da segurança pública de um Estado inteiro para as Forças Armadas já é, por si só, o pior dos cenários. A intervenção tem que dar certo ou tem que dar certo. Não há outra alternativa.

E se der errado ou se começarem a acontecer mortes, os militares vão ser questionados e atacados.

BBC Brasil – Um dos argumentos contra a nomeação de um general como interventor é o de que ele só poderia ser julgado pela Justiça Militar, tida por muitos como corporativista. Você acha que isso pode ser um problema?

Rocha – Pelo contrário, a Justiça Militar não tem nada de corporativista. Eu falo isso com tranquilidade porque, além de ser uma civil, sou um dos magistrados que mais absolve aqui nesse tribunal. É uma Justiça muito dura, muito rigorosa.

Eu acho os índices de condenação da Justiça militar, sinceramente, muito altos. Acho que poderíamos usar mais de política criminal, absolver mais. Mas a quebra da hierarquia e da disciplina para os militares é algo impensável.

Até compreendo que eles pensem assim. Homens armados, dotados do monopólio da força legítima que o Estado investiu, se insubordinarem é o caos e a repetição do que não queremos mais que aconteça.

Muita gente se surpreende com o rigor das punições, até para falhas menores como um cigarrinho de maconha, que na Justiça comum seriam desconsideradas. Aqui a pessoa deixa de ser réu primário, fica comprometida durante cinco anos, que é o tempo que ela precisa para frequentar a reabilitação e ter a ficha novamente limpa.

Veja a ironia. O Massacre do Carandiru foi julgado por um tribunal civil, mas somente 22 anos depois, quando vários crimes prescreveram. E o Tribunal de Justiça de São Paulo absolveu os comandantes. O mesmo aconteceu no Massacre de Eldorado dos Carajás – em que 55 militares foram denunciados e dois foram condenados.

A Justiça civil absolve, não o tribunal militar.

BBC Brasil – Mas numa operação sem precedentes como a do Rio, a Justiça Militar seria mais eficiente do que a comum para julgar possíveis crimes de soldados?

Rocha – Eu acho que a nossa Justiça teria muito mais competência e expertise para julgar esse tipo de crime. Primeiro porque ela é célere. Nós não temos a quantidade de processos que a Justiça Federal tem. O assoberbamento lá é tão grande que muitas vezes os crimes prescrevem. Nós conseguimos, bem ou mal, condenar ou absolver.

Além disso, a experiência dos militares vai ser fundamental nesse momento para dizer, por exemplo, se um exercício militar ou uma operação foi correta ou não foi. Às vezes há questões que eu mesma preciso que militares me expliquem para que eu possa julgar alguns casos.

BBC Brasil – Mas teremos forças militares lidando diretamente com a população, fazendo algo que não é de sua atribuição. Que garantia as pessoas podem ter de que a corte militar será imparcial?

Rocha – Acho que nesse ponto a sociedade não precisa ficar preocupada, porque a Justiça Militar é independente. Ela não tem vinculação nenhuma com os comandos e nem com o Poder Executivo. É uma Justiça especializada, como a eleitoral.

Os militares que estão aqui como julgadores não são subordinados aos comandantes das Forças. Quando eles vêm para o STM, eles saem da Força. Só permanecem como militares na ativa porque, quando um militar vai para a reserva, ele passa a ser automaticamente mais novo do que um que está na ativa. E para um militar poder julgar outro, precisa ser mais antigo do que ele.

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E se houver abusos eu não acredito que os militares não queiram punir. Muito pelo contrário. Porque às vezes por causa de um mau elemento da corporação pode-se comprometer toda a farda. Acho que os militares seriam os primeiros e os mais interessados em um julgamento justo e imparcial caso haja abusos na intervenção.

BBC Brasil – Na segunda-feira, o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, disse ser necessário dar aos militares "garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade" no futuro. Como vê essa afirmação?

Rocha – Eu não sei o que o comandante pensou quando disse isso, porque é difícil, às vezes, interpretar as palavras das pessoas. Mas posso dizer com certeza que impunidade ele não está buscando. A corte militar é séria e não é só composta por militares. E das nossas decisões cabe recurso no Supremo Tribunal Federal. Sequer somos a última instância.

Eu sempre fui a favor da Comissão da Verdade, mas é outra situação. Vivemos um regime constitucional, a intervenção foi decretada por um presidente civil democraticamente eleito – porque quando se elegeu a presidente Dilma se elegeu também Temer. E foi aprovada pelo Congresso Nacional, que é uma caixa de ressonância da sociedade.

BBC Brasil – O que as pessoas deveriam saber sobre a Justiça Militar?

Rocha – Que a Justiça Militar é uma Justiça civil também. Acho que isso é fundamental explicar. Todo o Ministério Público Militar é concursado, os juízes de primeira instância também são todos civis, há cinco civis na composição do STM. Os advogados que atuam aqui são civis.

É completamente diferente da Justiça Militar norte-americana, onde os promotores e os advogados de defesa são militares, onde é o comandante das Forças Armadas que decide se a ação penal vai prosseguir ou não e se a pena decidida será aplicada ou não.

Aqui é o Ministério Público Militar que propõe a ação penal. Nós somos independentes. A imparcialidade e seriedade de um magistrado se afere quando ele coloca a toga. E apesar de nossos militares aqui ainda vestirem a farda, eles são magistrados. A toga está por cima da farda. E pode ter certeza, ela funciona muito bem.

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