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‘Vivo melhor no Capão Redondo do que nos EUA’

Criado no subúrbio de Nova Jersey, Jordan Fields mora há pouco mais de um ano na zona sul de São Paulo dando aulas de inglês e fazendo raps sobre a periferia

Assim que chega a um dos cruzamentos mais movimentados da estrada de Itapecerica, o professor e rapper americano Jordan Ahman Fields ainda consegue olhar para trás e observar por uma última vez o movimento constante dos trens chegando e saindo da estação Capão Redondo, a última parada da Linha 5 – Lilás do Metrô, no extremo sul paulistano.

Se a cena acontecesse há dois anos, o ambiente não mudaria muito: tanto pela North como pela South Avenue – as duas avenidas que correm paralelas à linha de trem em sua passagem por Plainfield, no subúrbio de Nova Jersey, costa leste dos Estados Unidos – ele também podia ver a circulação intensa dos trens interrompendo o tráfego de veículos da pequena cidade onde cresceu.

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Ao redor das estações Capão Redondo, em São Paulo, e Netherwood, em Plainfield, porém, não há mais nada em comum. "Aqui, ando na rua às 4h da manhã sem medo. Às vezes, chegamos tarde no bairro e vamos andando da estação para casa. Passa alguém na rua e ainda dá um grito: ‘Salve, mano’", conta ele.

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"Na minha cidade nos EUA não é assim: se você encontrar alguém na rua às 4h da manhã, é certeza que vai ser roubado ou assassinado", completa.

Pouco tempo antes de mudar para o Brasil, Jordan vivenciou a experiência que agora usa para comparar os dois lugares: ao sair da festa de um amigo durante uma madrugada, precisou parar em uma rua vazia após uma pane do veículo que dirigia. Em vez de tentar consertá-lo ou sair para pedir ajuda, Jordan preferiu dormir dentro do veículo até o dia amanhecer. "Se eu saísse do carro talvez não estaria aqui agora."

Negros americanos

Apesar de ter passado sua infância e adolescência em Plainfield, Jordan Fields nasceu em Newark, também no subúrbio do estado de Nova Jersey, a 20 minutos de Jersey City e 40 minutos da Times Square, no coração de Nova York.

A cidade é conhecida nos Estados Unidos pela rebelião de julho de 1967, quando, após um taxista afro-americano ser agredido por dois policiais sem que tivesse cometido crime algum, as ruas foram tomadas por negros revoltados que desconheciam o paradeiro dele (ou do seu corpo). Naquele momento, a luta pela igualdade de direitos no país estava em seu auge.

O episódio ficou marcado como um dos mais tensos da história da luta racial no país: 26 pessoas morreram após quatro dias de confronto entre civis e o Exército – e um número não oficial indica que, desses, 16 eram moradores negros. "Todos os brancos saíram da cidade e não voltaram nunca mais", conta Jordan.

Um dos rebelados de Newark era o seu pai, que, na ocasião, chegou a ser atingido por um tiro de raspão na cabeça disparado por um soldado. A história de 1967 foi contada exaustivamente por ele até a sua morte, em junho de 2014. Ao jornal The New York Times, o líder do movimento negro em Newark à época, Robert Curvin, morto em 2015, disse que o conflito foi "a coisa mais dolorosa e traumática que ele viu na vida".

Jordan, da sua forma, também se rebelou: formado em História pela New Jersey City University, foi contratado como professor substituto em uma escola de ensino médio da periferia de Plainfield. Acreditou que poderia ajudar a mudar o destino dos meninos negros contando-lhes sobre o que representavam os episódios de 1967 e a própria história dos afro-americanos que havia culminado nos protestos. Não teve êxito.

"Os meninos precisam passar por um ‘batismo’ nas gangues afro-americanas para provar que são homens. É algo que remete à africanidade deles: na África, são comuns rituais que marcam uma passagem da vida", compara.

"Lembro especialmente de um aluno meu que foi assassinado por uma gangue rival: ele era um menino bom, estava sempre com o sorriso no rosto, não era um criminoso. Um dia, voltando de uma aula a que ele tinha faltado, passei em uma rua e vi a polícia isolando o corpo dele na calçada", lamenta.

Hoje, as cidade de Plainfield está lidando com um grande conflito entre negros e latinos, que desde os anos 1980 migraram em massa à costa leste dos EUA. Segundo dados do governo de Nova Jersey, 19% da população do Estado é hispânica – na maioria salvadorenhos, guatemaltecos e mexicanos. Assim como em Los Angeles, na Califórnia, foi nessa época que nasceram gangues violentas como a Mara Salvatrucha (MS-13), que passaram a brigar pelos territórios com os grupos ali já estabelecidos pelos negros, como os Bloods e Crips.

"Duas minorias se matando. É um absurdo", lamenta Jordan. Em 2009, ele criou, em parceria com um amigo o grupo "Negros Americanos", que tentava unir latinos e negros na periferia de Nova Jersey cantando raps em espanhol.

Apesar da dificuldade em aprender o idioma, o simbolismo de ver um negro cantando um estilo musical identificado com o cotidiano periférico negro dos EUA em um idioma hispânico atraiu a atenção da cidade. Conseguiu a façanha de ter entradas entre os dois grupos e chegou a abrir shows para rappers famosos como Naughty By Nature, Redman e Styles P.

"Em Plainfield, todo mundo quer ser rapper ou jogador de basquete. São os clichês. Quando os caras me viam rimando em espanhol, eles falavam: ‘Pô, isso aí é diferente’", conta. O projeto chegou a levá-lo ao Panamá, onde passou um ano estudando o idioma e organizando shows de rap na periferia da Cidade do Panamá, além de produzir um documentário sobre a guerra entre negros e latinos em Plainfield.

O trem

Jordan não sabe se foi um sonho ou um fato que lhe apresentou o Brasil. Certo dia, um brasileiro perdido na página "Negros Americanos" do Facebook lhe enviou o vídeo de "Negro Drama", clássico do grupo paulistano Racionais MC’s, pedindo para que ele gravasse uma versão própria. Disse ainda que o trabalho dele em Plainfield tinha muitas semelhanças com o que acontecia nas periferias das grandes cidades brasileiras.

"Eu só não tenho certeza se essa conversa existiu. Eu a procurei muito no histórico do Facebook, mas nunca a encontrei de novo. Às vezes, realmente acredito que foi algo do destino para eu chegar aqui, que esse diálogo nunca aconteceu".

Como já sabia falar espanhol, Jordan passou a estudar português ouvindo rap brasileiro – os próprios Racionais MC’s, Sabotage e Facção Central -, além de algumas influências que chegavam ocasionalmente, como um disco do Trio Mocotó que caiu nas suas mãos. No final de 2015, ele atendeu ao pedido e postou uma pequena versão em português de "Negro Drama" em seu perfil no YouTube.

À época, Jordan já namorava à distância a fotógrafa e também rapper Lena Silva, uma das líderes de um coletivo negro do Capão Redondo. Eles se conheceram quando ele procurava movimentos semelhantes ao seu no Brasil. "Ela teve muita paciência me ensinando português pelo Facebook e, para mostrar a ela que eu estava realmente empenhado, comecei a gravar os vídeos". Em janeiro do ano passado, eles se casaram, meses depois de sua chegada ao Brasil e, enfim, de conhecê-la pessoalmente.

Em abril de 2016, quando ainda vivia em Plainfield, Jordan publicou outra música em português na plataforma: "O Trem", clássico do rap brasileiro gravado pelo RZO em 1999. Ao contrário da primeira, porém, ele queria não apenas cantar, mas produzir um clipe alternativo.

Copiando o vídeo original, em que os membros do grupo brasileiro registraram imagens do cotidiano dentro e fora dos trens que passam por Pirituba, bairro periférico da zona oeste de São Paulo, a versão de Jordan tem cenas filmadas por ele mesmo em Newark, à beira da ferrovia, cujo dia a dia é preenchido por pobreza e violência.

"Minha intenção era mostrar como, longe da ideia encantada que os brasileiros têm dos EUA, a vida lá também pode ser muito complicada. Principalmente para os negros", diz.

Para Helião, um dos membros do RZO, a gravação de Jordan reproduziu com perfeição o processo de produção da própria música. "Na época que fizemos ‘O Trem’ estávamos em uma batalha pesada para sermos rappers. Essa música tem muito sofrimento, suor, sangue mesmo, e eu acho que ele sentiu essa força", diz.

"Quando eu vi pela primeira vez achei demais: um negro bonito, dreads no cabelo, mostrando a linha do trem. A música é muito forte mesmo, cara", completa.

A versão de "O Trem" de Jordan explodiu na cena hip-hop de São Paulo: tinha 201 mil visualizações até janeiro e lhe rendeu uma fama que, agora que vive aqui, chega a incomodar. "É meu vídeo mais assistido no YouTube, mas é complicado: vou fazer shows aqui e em algum momento os caras me pedem pra cantar a música, mas não quero ficar marcado só por ela", completa.

Inglês na quebrada

No ano passado, quando já trabalhava em algumas escolas de inglês da zona sul de São Paulo e dava aulas particulares em empresas, Jordan conheceu o coletivo Desenrola Não Me Enrola, no Jardim Ângela, formado por jornalistas que tentam produzir reportagens sobre a periferia da cidade com visões diferentes das dos grandes jornais.

Já no primeiro encontro surgiu a ideia de Jordan elaborar um curso de inglês para os moradores da região, que se transformou em realidade em agosto do ano passado. Ao custo de R$ 65 por mês, ele encerrou a primeira turma no final de 2017 com 25 alunos que se encontram duas vezes por semana na sede do coletivo, no Centro de Mídia e Comunicação Popular M’boi Mirim, na zona sul da cidade.

"Quando o curso começou, eram 40 pessoas. Muitas delas saíram porque tinham que trabalhar, estudar etc.", conta Lena. "Houve até quem conseguiu emprego por causa do inglês que aprendeu nas aulas", completa Jordan.

"O curso tem outra perspectiva que os comuns: não se trata apenas do estudo de inglês, mas de aprender o idioma a partir de rodas de conversa sobre questões que envolvem o cotidiano do periférico, usando a experiência dele nos EUA como negro e, claro, como periférico", comenta o jornalista Ronaldo Matos, editor de conteúdo do Desenrola Não Me Enrola.

Neste ano, o projeto deve ganhar uma novidade: a presença de ativistas do movimento negro dos Estados Unidos para rodas de conversa em inglês com os alunos. Jordan quer mais: ao lado de Lena, formou o grupo de rap "UmSoh", que já lançou a música "A Periferia Pede Socorro" no ano passado. O vídeo no YouTube, gravado no Capão Redondo, tem 9 mil visualizações. Novas canções devem ser lançadas neste ano.

"Também quero criar codornas", conta Jordan, e antes que a surpresa da reportagem da BBC Brasil se torne uma nova pergunta, ele emenda: "Para quem nunca teve nada, ter meu lugar para viver aqui e para criar minhas codornas já é um paraíso".

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