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Como descobri, aos 36 anos, que não era quem pensava ser

Tirado dos braços da mãe na prisão durante a ditadura argentina, neto de presidente das Avós da Praça de Maio fala da descoberta que mudou sua vida.

Ignacio Hurban tinha 36 anos quando descobriu que era personagem de um escândalo nacional na Argentina.

Ele foi uma das centenas de bebês tirados dos braços das mães na prisão, durante a ditadura militar (1976-1983), e entregues a famílias consideradas favoráveis ​​ao regime.

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Mais precisamente, ele descobriu que era Guido Montoya Carlotto, neto desaparecido de Estela de Carlotto, presidente da associação Avós da Praça de Maio, organização de direitos humanos criada em 1977 para tentar localizar crianças sequestradas na ditatura argentina.

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Por quase 40 anos, Estela protagonizou uma luta incansável para encontrar o bebê de sua filha Laura, que teria sido assassinada pelos militares logo após dar a luz. Toda a nação argentina torcia por ela.

Ignacio ficou então famoso da noite para o dia – e se viu diante de uma nova família.

Três anos após a descoberta que mudou o rumo de sua vida, ele concedeu entrevista ao programa Outlook, da BBC, em que fala sobre sua trajetória.

Infância no campo

Filho único, Ignacio passou a infância em uma área bucólica do país. Ele conta que passava muito tempo sozinho, mas não sentia solidão. Segundo ele, seus amigos eram os animais – cachorros, gatos, galinhas e cavalos.

«Passei minha infância em uma cidade a 360 quilômetros de Buenos Aires. Era uma região muito remota. Passei minha infância com total liberdade, em contato com a natureza. Eu brincava o tempo todo. Inventava minhas brincadeiras, lia muito. Me imaginava vivendo as aventuras que lia nos livros.»

«Foi uma infância muito feliz. Isso influenciou profundamente quem eu sou.»

Ele não sabia, no entanto, que era filho adotivo.

«Nunca tive qualquer indicação de que meus pais não eram meus pais biológicos. Eu não parecia com eles, mas nunca duvidei. Talvez porque eu fosse tão feliz, nunca questionei nada.»

Ignacio contou que durante a infância sabia muito pouco sobre a ditadura, tampouco sobre os bebês que tinham sido sequestrados e as avós que procuravam por eles.

«Vivia em um lugar isolado, sem TV, rádio ou eletricidade. (…) Só fiquei sabendo sobre esse assunto quando fui para a universidade», contou.

A descoberta da adoção

Mas, no dia 2 de junho de 2014, aniversário de Ignacio, sua vida mudou para sempre. Uma amiga da mulher dele contou que ele não era filho do casal que o criara.

«O dono das terras onde meus pais trabalhavam, ou seja, o homem para quem meus pais trabalhavam, morreu. E o pai da amiga da minha esposa havia trabalhado para esse homem. Ele sabia da história porque o proprietário das terras tinha sido o intermediário. Tinha me trazido, ainda bebê, para a fazenda. Foi então que iniciei minha busca.»

Ele teve então uma conversa difícil com os pais adotivos.

«Nos sentamos à mesa, fiz as perguntas e eles responderam. Ou melhor, responderam o que sabiam, o que não era muita coisa.»

Os pais de Ignacio tinham arrendado uma fazenda e passado suas vidas cultivando a terra. Quando se deram conta de que não podiam ter filhos, o dono das terras foi falar com eles. Disse que poderia dar um bebê a eles, com a condição de que não falassem sobre a origem da criança.

«Meus pais também disseram que não sabiam nada sobre meus pais (biológicos) ou sobre a minha família. Aos poucos, descobrimos que esse proprietário de terras tinha contato bastante próximo com a ditadura militar.»

Teste de DNA

Diante da informação, Ignacio procurou as Avós da Praça de Maio. Ele tinha nascido em 1978 e sabia que se encaixava no perfil das crianças desaparecidas – ou seja, nascidas entre 1976 e 1980.

«Eu sabia o que havia acontecido durante a ditadura, sabia sobre os assassinatos, os desaparecimentos, a tortura. Sabia que havia mulheres clandestinas tendo bebês na prisão e sabia que essas crianças haviam sido entregues para adoção de forma ilegal. E não apenas eu. Todo mundo sabia, porque isso havia se tornado parte da consciência argentina. »

«Então, quando soube que era filho adotivo, pensei que talvez houvesse uma família em algum lugar procurando por mim. Acho que fiz isso por conta de uma consciência social. Eu não precisava saber nada. Fiz porque era a coisa certa a fazer», afirma.

Poucos dias após enviar o primeiro e-mail, Ignacio foi contatado por uma ONG de direitos humanos. Perguntaram se ele queria fazer um teste de DNA – na Argentina, existe um banco com o DNA da maioria dos avós e pais dos desaparecidos.

«Decidi fazer o teste. Algumas semanas depois, recebi a notícia de que eu era, sim, neto de uma das avós da Praça de Maio. E não de qualquer avó. Eu era neto da presidente do grupo, Estela de Carlotto.»

A revelação

Ignacio sabia bem quem era sua avó – Estela é uma figura pública não só na Argentina, mas internacionalmente. O impacto da revelação sobre ele foi fortíssimo.

«Tornei-me objeto de imensa felicidade coletiva, como aquela felicidade que um país sente quando ganha a Copa do Mundo. Tentei assimilar essa realidade, e sentir essa felicidade.»

O primeiro encontro com a avó aconteceu um dia após ele receber a notícia.

«Fui com alguns amigos e com a minha esposa até a casa da minha avó, em La Plata. Nos encontramos, nos abraçamos e começamos a falar. Eu estava chocado. Impressionado. O sentimento de uma pessoa que procura por outra durante mais de 36 anos é diferente do que eu sentia naquele momento. Estava feliz por eles, mas estava em estado de choque.»

Ele descobriu então quem foram seus pais biológicos e o que tinha acontecido com eles.

«Me contaram sobre a infância dos meus pais. Me disseram que eles tinham sido membros de um grupo militante. Antes de ser capturados, viviam na clandestinidade. Por isso, sabia-se muito pouco sobre as circunstâncias em que viviam», disse.

«Também me falaram da dificuldade em encontrar seus restos mortais. No caso do meu pai, os ossos só foram encontrados em 2010, em uma vala comum, em Buenos Aires. Foi uma história muito triste e dolorosa.»

Processo na Justiça

As duas famílias de Ignacio – a biológica e a adotiva – se encontraram pela primeira vez no aniversário da filha dele.

«Foi uma festa muito grande, o primeiro aniversário da minha filha. Estavam lá a minha família biológica, meus pais adotivos e também muitos amigos. Na verdade, não foi um encontro. Foi uma saudação. É uma situação muito difícil. É muito dolorido, não só para a minha avó, mas também para os meus pais. Houve um pouco de tensão, mas houve uma saudação entre eles, e o foco era o aniversário da minha filha.»

Segundo Ignacio, há um processo em andamento na Justiça.

«Existem muitas complicações legais porque muitos crimes foram cometidos. Tudo precisa ser investigado, tudo faz parte da Justiça argentina. Sinto muita tristeza e muita preocupação em relação a isso.»

Ele não sabe o que poderia acontecer a seus pais adotivos.

«Posso apenas esperar que haja um final positivo para eles. E que eles não acabem na prisão – o que seria o pior resultado possível.»

Veia musical

Ignacio adotou o sobrenome dos pais biológicos, mas manteve o primeiro nome – apesar de ser conhecido na Argentina como Guido.

«Decidi manter meu nome, Ignacio, porque ele é parte da minha identidade. Guido é o nome que minha mãe teria me dado e seria meu nome se minha mãe tivesse me criado. Mas não funciona assim. Identidade é algo que você constrói e eu construí a minha em torno do nome Ignacio.»

Ignacio Carlotto é músico e compositor, com vários discos gravados. Ele diz não saber ao certo de onde herdou seu talento musical – mas há algumas pistas.

«Em minha família biológica há vários músicos. Meu pai era baterista, meu avô era saxofonista. Também há músicos na família da minha mãe biológica. Então acho que isso vem daí…»

Três anos após a revelação que mudou para sempre a sua vida, Ignacio diz que não se arrepende de ter buscado a verdade. Faria tudo de novo.

«É tudo muito doloroso, não apenas para mim, mas também para as famílias que procuraram por mim todo aquele tempo. Mas (faria tudo de novo) porque quero contar a verdade à minha filha. O que deixo para ela, como herança, é essa verdade.»

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