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A rotina dos vendedores de mate nas praias do Rio, sob calor de 40º e com 50 kg nas costas

Após proibição em 2009, protesto da população trouxe de volta os vendedores de mate para as praias e hoje são ‘Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro’; a reportagem da BBC Brasil acompanhou a jornada de trabalho de um deles, desde a preparação do mate, na madrugada, até o por do sol.

*Imagens e edição do vídeo: Ana Terra Athayde

Quem passou por alguma praia do Rio de Janeiro no verão provavelmente ouviu o grito: "Ó o Mate! Ó o limão! Limonada, Mate!" ou alguma outra das muitas variações existentes. Por trás dos gritos estão homens de todas as idades, vestidos num uniforme laranja com dois galões nos ombros e um saco do famoso biscoito de polvilho Globo nas mãos.

Fabiano Souza, de 36 anos, é um desses. Seu trabalho começa ainda de madrugada e, na maioria das vezes, só acaba quando o sol se põe atrás do morro Dois Irmãos ao fundo da praia do Leblon.

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"Chego da praia meio tarde, umas 22h. Aí vou botar o mate para ferver, lavar os galões e o uniforme. Lavo o limão e deixo para moer de manhã. Acordo 6h, coo o mate, faço o sumo do limão, encho o galão e saio para Ipanema", contou à BBC Brasil enquanto se preparava para ir à praia aproveitar mais um dia de sol do verão carioca – não descansando, como a maioria que estaria lá, mas trabalhando muito. "Estou há 10 dias trabalhando sem parar."

Morando em Guadalupe, um bairro a 40km de Ipanema, Souza vive com o filho de 14 anos em uma casa humilde de dois quartos – ele tem mais um filho de 10 que fica com a ex-mulher. A preparação do mate é feita em sua cozinha ainda na madrugada e, quando tudo está pronto, ele pega um mototáxi, um ônibus e o metrô em 1h30 de trajeto até chegar ao local de trabalho. Tudo isso com quase 50kg nas costas.

"As pessoas costumam perguntar: ‘Nossa, isso é pesado? Como você aguenta?’. Eu digo: ‘Minha querida, quando eu lembro do Nescau, das contas para pagar, rapidinho o peso diminui. Vai ficando leve, vira um isopor. É só lembrar das contas’", brinca.

O primeiro teste para Souza é sempre quando ele sai do estacionamento onde deixa guardado o resto de seu material de vendas – como o biscoito Globo, os copos de plástico e o açúcar – e pisa no asfalto descalço no caminho para a praia. Assim que encosta os pés na rua, ele já começa a andar mais rápido sentindo a sola queimar. O termômetro marca 33ºC e são apenas 10h30 do horário de verão.

Ao longo de um dia quente, bem comum no verão carioca, Souza anda cerca de 16 km com os dois galões nas costas, sobre uma toalha que alivia a dor do contato direto da alça com os ombros. Seu local de trabalho é entre os postos 9 e 10 de Ipanema (a distância entre um e outro é de cerca de 1km), uma das regiões mais movimentadas da praia. As paradas ao longo do caminho são inevitáveis – para tomar fôlego, para tomar um mate e se refrescar ou para aliviar o calor umedecendo a toalha dos ombros no chuveiro.

"No início, quando comecei a trabalhar, achei maneiro, pensei: ‘vou tomar banho de mar todo dia’. Aí deixava o galão e ia refrescar no mar. No terceiro dia, não aguentei, as costas ficaram ardendo, em carne viva. Aí descobri que água salgada no sol não combina com o galão. Agora fico só no chuveirinho, molhando a toalha. É a melhor coisa."

Início

Com 22 anos, ele trabalhava em um prédio próximo à praia de Ipanema e, em seu horário de almoço, gostava de passear pelo calçadão, onde assistia, curioso, aos vendedores de mate e seus galões.

"Aí fui mandado embora, peguei o dinheiro da rescisão e comprei um galão. Isso foi em 2003. Trabalhei no primeiro verão, gostei, mas aí quando chegou o inverno, achei que não valia a pena", contou.

Logo no início, Souza aprendeu que esse era outro dos grandes desafios de se trabalhar na praia. O verão empolgava com a bonança, enquanto o inverno era o banho de água fria nos negócios. A organização financeira foi um dos primeiros aprendizados que o mate lhe trouxe.

"Aprendi com o tempo, passei muita necessidade no início. Ficava 2 meses fazendo bico, fazendo obra. Mas agora a mente já é outra."

"Viver de mate é juntar o dinheiro e deixar guardado para quando chegar a vaca magra você ter um dinheiro lá. Se você gastar tudo, vai passar necessidade. Porque é difícil, tem vezes que a gente fica um mês sem praia", explicou.

Aluguel de galões

Entre idas e vindas, Fabiano chegou a se desfazer de seu par de galões algumas vezes, desistindo do sacrifício daquele trabalho pesado com o qual não conseguia se sustentar.

O galão usado pelos vendedores de mate na praia é de um material bastante resistente e pode ser comprado direto na metalúrgica. Segundo Fabiano, o preço de um par gira em torno de R$ 2,5 mil e R$ 3 mil – o que revela outro ramo de negócio existente nesse meio: o do aluguel de galões.

"Não é todo mundo que tem dinheiro para comprar o par. Aí tem pessoas que compram quatro ou cinco pares de galão e colocam pessoas para trabalhar para eles na praia. Eles mesmos não trabalham. Dão o material, o galão, e aí o que o cara fizer no dia, eles racham", explicou.

Proibição

Em 2009, a prefeitura do Rio de Janeiro chegou a proibir a venda do mate de galão nas praias por "problemas sanitários". Isso gerou revolta em frequentadores da praia, que chegaram a fazer abaixo-assinado pela volta da tradição da cidade.

"Nessa época, viramos fora da lei. Era um corre para lá e para cá. A gente ficava de rabinho de olho para ver quando vinham os guardas municipais. Muitos amigos perderam galão nessa época, eles confiscavam. O pessoal nos ajudava, mandava a gente se esconder e colocava a canga em cima. Se voltamos a trabalhar, foi por causa da população, que protestou", conta Souza.

A reivindicação popular fez com que o mate das praias do Rio fosse declarado oficialmente Patrimônio Cultural e Imaterial da cidade em 2012.

Desde então, o sucesso do mate de galão fez os vendedores se multiplicarem pelas areias cariocas. Pelas informações oficiais da Prefeitura do Rio, há um total de 1.272 vendedores ambulantes atuantes nas praias – mas os cadastros não separam as categorias deles pelo produto que comercializam. A atividade dos vendedores de mate ainda é desregularizada e ainda não há controle sanitário rígido sobre o que é comercializado na praia.

Uniforme e gritos: a alma do negócio

A concorrência na areia é grande, então é essencial ter algo que te diferencie dos outros. Souza aprendeu isso ao longo dos anos – no início, era vencido pela timidez.

"Eu era todo tímido, não conseguia gritar. Falava ‘limonada, matchê’ (fala sussurando). Agora não, eu faço questão de gritar: LIMONADA, MACTHÊ, GELADÃO, É O FREEZER HEIN!", diz, soltando a voz.

"Quem trabalha na praia e não é extrovertido, não ganha", concluiu.

Mas Souza não tenta apenas ganhar no grito. Ele tem estratégias de abordagem divertidas para atingir clientes novos, que ainda não o conhecem – e que não costumam consumir o mate. Às vezes dá certo, outras não, mas o mínimo que acontece é ele ganhar a simpatia de possíveis clientes futuros.

A tática é simples. Ao se aproximar de um grupo de amigos conversando na praia, ele começa: "Oi pessoal, desculpa o atraso, fiquei preso no engarrafamento. Foram vocês que pediram o disque-mate? Não? Mas o GPS está mostrando esse endereço, têm certeza?", brinca, arrancando risadas das jovens.

A outra chave para o sucesso do negócio, segundo Fabiano, é manter o uniforme laranja na linha. "A maresia acaba com ele em no máximo dois verões. E você percebe que quando o uniforme está laranjinha, novinho, o pessoal confia mais. Sem o uniforme, a gente não é nada."

Todos os vendedores de mate de galão na praia usam o logo da Matte Leão na roupa laranja que caracteriza a marca. No entanto, não há vínculo qualquer deles com a marca, que hoje pertence à Coca-Cola.

"Antes, a gente comprava três caixinhas de copinho e ganhava um uniforme da Matte. Mas depois que a Coca-Cola comprou a Matte Leão, ela já não fornece o uniforme pra gente. A gente tem que se virar. Tem gente que manda fazer, e agora como expandiu muito (o negócio), tem gente que faz o uniforme pra vender."

Segundo a Coca-Cola, "os vendedores ambulantes de mate exercem suas atividades de maneira totalmente independente. Eles trabalham de forma autônoma, sem qualquer vínculo com a marca Leão. Não temos conhecimento sobre qual a procedência do produto (o mate em galão) ou a maneira como é preparado".

Há 14 anos na profissão, Fabiano não sabe por quanto tempo mais irá conseguir viver disso e toma remédio todos os dias para amenizar as dores musculares do peso carregado todos os dias. "Vou nisso até quando Deus me der forças". Ele diz que, apesar do sacrifício, do cansaço e do sol queimando a pele, pretende seguir na carreira e ter encontrado nela sua vocação.

"Já pensei em parar de vender mate quando chega aquela época ruim. Minha mãe é uma das que torce para que eu pare, porque é um trabalho cansativo. As pessoas falam que é cansativo e realmente é. Eu não vou ficar jovem pra toda vida. Uma hora cansa, meu galão é pesado. Mas nesse momento que eu estou, vou investir, para lá na frente ter retorno", afirmou.

"Nesses 14 anos, a minha vida mudou muito. Antes, eu trabalhava por trabalhar. Hoje eu amo a profissão que tenho. O mate me trouxe muitas coisas. Uma delas foi ficar mais responsável. Eu não tenho muitas coisas, mas o que tenho veio pelo trabalho do mate. É a minha vida."

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