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A saga em busca de um tesouro real roubado em 1885 – e cujo paradeiro ainda é misterioso

Quando o Reino Unido conquistou Mianmar, no século 19, um rubi de valor incalculável que pertencia ao rei Thibaw desapareceu sem deixar rastro; hoje, o bisneto do monarca tenta descobrir onde foi parar essa relíquia.

Se a história tivesse tomado outro rumo, o homem simples de 70 anos ao meu lado, tremendo com o frio de outono de Londres, poderia ter sido o rei de Mianmar, líder de uma nação mais de 50 milhões de pessoas.

U Soe Win passou a vida mantendo um estilo discreto. Os generais que governaram Mianmar após sua conquista pelo Reino Unido, em 1885, não queriam a concorrência de pessoas com linhagem real. Assim, ele trabalhou por décadas de forma silenciosa no serviço diplomático do país.

Enquanto esperamos na rua por John Clarke, curador de arte sudeste-asiática do museu londrino Victoria & Albert, Soe Win tenta manter suas sandálias fora das poças geladas na calçada. "Agora sei por que vocês britânicos foram para Mianmar", ele brinca. Concordamos que é uma boa ideia ele usar sapatos no restante de sua estadia na capital britânica.

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O objetivo de nossa visita ao museu é ver valiosos objetos que já pertenceram à sua família – e alguns que ainda pertencem. Mas também estamos à caça de um tesouro: um enorme rubi.

Quando Clarke chega, ele nos leva pelos corredores do museu e conta que, por muitos anos, o V&A, como a instituição é conhecida localmente, teve a maior coleção de arte de Mianmar do mundo: a Mandalay Regalia.

São 167 objetos de ouro com pedras preciosas que vão de armas de fogo a louças e sapatos. Os britânicos os tomaram do último rei do país, o bisavô de Soe Win, quando ele foi deposto e mandado ao exílio.

No entanto, foram devolvidos ao governante de fato de Mianmar em 1964, o general Ne Win, como um gesto de boa vontade. Tudo, menos uma peça que o general mandou de volta para o museu como um presente: um ganso de ouro. Talvez uma mensagem com a típica ironia de Mianmar para seu antigo conquistador?

Finalmente, Soe Win pergunta: o que aconteceu com o rubi de seu bisavô, o Nga Mauk, que tinha o tamanho de um ovo de pata, sobre o qual diziam "valer um reino" e que trazia sorte ao seu dono?

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"Não está nem jamais esteve aqui", responde Clarke. "O mais provável é que esteja em um lugar como a Coleção Real, porque me lembro de ter lido que ele foi dado de presente à rainha (britânica) Vitória (1837-1901)."

O principal suspeito

Quando conheci Soe Win, em 2014, ele me garantiu que jamais iria a Londres. Estava aposentado havia muito tempo e vivia em uma pequena casa próxima a uma ferrovia. Havia passado sua carreira preocupado, vivendo em meio àqueles que haviam exilado seu bisavô, arruinado sua família e ocupado seu país.

Em novembro de 1885, 10 mil soldados do Reino Unido haviam sido enviados para tirar o rei da então Birmânia do poder. A invasão deu fim a seis décadas de tensão e conflitos esporádicos entre britânicos e cidadãos de Mianmar, causados entre outras coisas pela recusa de autoridades britânicas em tirar os sapatos na presença do rei. Mas o conflito principal era comercial.

O governo britânico considerava o rei Thibaw um obstáculo para o comércio com a China. Também havia o medo de que ele favorecesse a França, que expandia seus territórios imperiais a oeste da Indochina, muito próximo da Índia, a joia da Coroa britânica.

Os britânicos levaram apenas duas semanas para derrotá-lo. Com o palácio cercado, o rei se rendeu em 29 de novembro. Foi levado com sua mulher, que estava grávida, e suas duas filhas até um barco que os levaria a Ratnagiri, uma ilha de pescadores a milhares de quilômetros dali, na costa ocidental da Índia.

Por isso, Soe Win temia que o enviassem a Londres como parte do corpo diplomático. Mas, agora, havia aceito vir voluntariamente para buscar pelo rubi de seu bisavô.

Após nossa visita ao V&A, fomos à Biblioteca Britânica, onde são conservados muitos registros da anexação da antiga Birmânia. Ali, encontramos um desenho feito por um artista do país sobre a queda de Thibaw.

Soe Win observa a pintura, e seus olhos se concentram na figura de um homem vestido com um uniforme branco que fala com o rei. "O coronel Sladen", ele sussurra, para logo me contar a história de Edward Sladen, um condecorado veterano que chefiou a força de invasão britânica.

‘Desaparecimento do rubi’

Sladen era conhecido pelo rei, falava birmanês e ficou encarregado da tarefa de fazer Thibaw se render sem gerar agitações. Foi ele quem supervisionou enquanto o rei empacotava apressadamente suas posses mais valiosas, entre elas o Nga Mauk, para ir para o exílio. O que aconteceu depois é parte de uma famosa lenda.

A filha mais jovem do rei escreveria anos depois que "Sladen pediu ao seus pais para ver o rubi, e eles o deram" ao general. "Segundo meus pais, depois de observá-lo por um tempo, ele o colocou no bolso, fingindo estar distraído, e nunca o devolveu."

Esse é o relato mais famoso do que aconteceu, e muitos acreditam que o título de cavaleiro que foi dado a Sladen meses depois por seu "serviço especial na Birmânia" é a prova de que ele levou o rubi, o deu à rainha Vitória e, em troca, recebeu essa recompensa.

O próprio Thibaw dizia que havia dado a pedra preciosa ao coronel britânico para que o protegesse junto com outros objetos de valor. Do exílio, ele escreveu para autoridades britânicas na Índia em junho de 1886 para que devolvessem seu rubi.

"Os pertences na lista que envio", escreveu seu secretário, "foram entregues (por Thibaw) ao coronel Sladen porque temia que se perdessem durante a viagem. O coronel Sladen prometeu que seriam entregues quando ele quisesse. Ele espera que sua excelência o governador-geral (vice-rei da Índia) ordene que os objetos sejam devolvidos".

A lista inclui "um anel de rubi conhecido pelo nome de Nagamauk (outra possível grafia de Nga Mauk)".

Thibaw nunca deixou de reivindicar a devolução dos seus pertences. Ao fim de 1911, escreveu diretamente ao rei George 5º, sucessor de Vitória, mas as autoridades britânicas se faziam de surdas: o homem acusado havia morrido 21 anos antes. O rei Thibaw viria a falecer cinco anos depois, em 1916.

Os herdeiros

Após sua morte, sua filha mais jovem, a avó de Soe Win, manteve o pedido, inclusive escrevendo à Liga das Nações, organização internacional que precedeu a ONU.

Quando ela morreu, seu filho Taw Phaya Galae, tio de Soe Win, seguiu com a busca – e foi graças à sua investigação que ele e eu estamos em Londres.

Phaya Galae escreveu um livro com teorias do paradeiro do rubi. Ali, garantiu que, "por maior que seja o empenho dos imperialistas britânicos de apagar os rastros do rubi Nga Mauk, há fortes evidências de sua existência". Sua hipótese era de que a pedra podia estar escondida bem à vista, incrustada em joias reais britânicas.

Ele não era o único que pensava assim: ao fazer uma busca na internet por "rubi Nga Mauk", aparecem muitas imagens da rainha Elizabeth 2ª e suas joias, como a coroa real, mas o rubi usado nela é outro, chamado "Príncipe Negro".

Phaya Galae acreditava que o Nga Mauk poderia ter sido usado para decorar a coroa imperial da Índia, uma joia especial feita em 1911, quando George 5º viajou ao país para ser coroado imperador. Mas há um problema com essa hipótese: essa coroa não tem o tamanho do Nga Mauk. Ainda assim, quem acredita na teoria diz que a pedra pode ter sido partida em quatro e usada em diferentes partes da coroa.

Sabemos que os rubis da coroa são de "origem birmanesa", como destaca um documento oficial de 1998. Mas a realidade é que a maioria dos rubis do mundo vêm dali. O Royal Colletion Trust, a organização que cuida da Coleção Real, disse que não há informação sobre sua origem e se recusou a conceder uma entrevista.

Soe Win e eu fomos à Torre de Londres visitar a Coleção Real e ver se há algo oculto. Entusiasmados como dois estudantes, chegamos à coroa imperial da Índia e a observamos. Depois de algum tempo, me dei conta de que Soe Win não estava ao meu lado. Encontrei ele do lado de fora, no pátio, com uma cara de preocupação.

Estava convencido de que nenhuma das peças que acabara de ver era o Nga Mauk. Garantiu que, se fosse, teria sentido.

"Quero ver o que não estão me mostrando. Eu vim para isso", me disse, sorrindo.

A carta

Decidimos voltar à Biblioteca Britânica para continuar nossa busca. Encontramos ali uma carta enviada em dezembro de 1886 pelo vice-rei da Índia em resposta ao pedido de Thibaw, em que ele ordenava uma investigação.

Todas as pessoas que haviam estado presentes no Palácio Mandalay quando o rei foi deposto foram contactadas, incluindo Sladen, então um cavaleiro da Coroa que havia regressado a Londres e que se preparava para se aposentar.

Entre seus documentos pessoais ainda conservados pela Biblioteca Britânica, há três rascunhos da carta que escreveu em resposta ao vice-rei. Acredita-se que Sladen tenha tido dificuldades para achar as palavras certas.

O que finalmente disse foi que não havia visto os pertences da lista de Thibaw, que o rei não havia feito "nenhuma tentativa de entregar objetos particulares" em meio ao caos e que havia entregue tudo que havia estado em seu poder. Também indicou um grande número de pessoas que poderiam ter levado um objeto tão pequeno e valioso como um anel de rubi.

Outra coisa nos chamou atenção: o diário pessoal de Sladen. Buscando em suas memórias sobre o dia 29 de novembro de 1885, achamos algo curioso: na terceira folha, 12 linhas foram rasuradas. As primeiras três foram tapadas com tinta e o restante, com lápis. É a única folha do diário que foi editada, algo muito suspeito.

Um funcionário da biblioteca se ofereceu para usar uma técnica para descobrir o texto rasurado. A parte coberta com lápis é ilegível, mas, onde foi usado tinta, é possível ler algumas palavras: "Rei me pede que receba… Regalia – eu concordo – me pede pessoalmente para levar K…".

O que vem a seguir poderia ser qualquer coisa, mas Soe Win está certo de que se refere ao Nga Mauk. "Por isso o apagou, é muito simples", ele me diz.

Mas, se Sladen levou o rubi, o que fez com ele? Pergunto isso a seu bisneto, o conde de Portsmouth, quando o visito em sua mansão em Hampshire. Ali, há uma caixa com três das medalhas dadas a Sladen pela rainha Vitória.

O conde me conta que corria em sua família um vago rumor de que o coronel havia "roubado a coroa de Thibaw", mas que nunca ouviu nada sobre um rubi.

"Se roubou e ficou com ele, onde está o dinheiro?", pergunta ele, explicando que a Sladen, a família de sua mãe, não era rica. "O filho de Edward, meu avô, teve de se dedicar à caça de elefantes no Quênia para sobreviver."

Busca real

Isso cria outra possibilidade: talvez Sladen o tenha levado, mas entregado à rainha Vitória, como acreditava Clarke, do V&A.

Ele me envia uma carta que o Royal Collection Trust escreveu em resposta ao professor universitário Michael Nash, que, em 2003, fez uma consulta sobre o Nga Mauk.

Uma funcionária da instituição disse que, em um inventário das joias da rainha Vitória feito em 1896, havia menção a um "rubi cabochão (75)". O termo faz referência a uma pedra preciosa polida, mas não lapidada. O número poderia ser dos quilates: o Nga Mauk tinha mais de 80, mas talvez possa ter sido cortado.

"O inventário destaca que a pedra veio do rei da Birmânia, foi entregue à rainha por embaixadores e restaurado em estilo clássico", escreveu a funcionária.

Onde está hoje essa pedra? "Um bracelete foi herdado pela princesa Louise, duquesa de Argyll", diz, em referência à quarta filha da rainha Vitória. "Portanto, não faz mais parte da Coleção Real."

Nash escreveu à atual duquesa de Argyll, que lhe disse que a joia já não está mais entre os bens de sua família. Aparentemente, a princesa o deixou para alguém ao morrer, mas não é possível ter acesso à sua lista de herdeiros.

Quando pergunto a Soe Win por que é tão importante encontrar o rubi de seu bisavô, sua resposta me surpreende. "Vocês têm tantas relíquias de sua história, nós não temos nada."

Ele pensou nisso durante sua estadia em Londres, onde encontrou muitos objetos originários de Mianmar. E me conta que as pessoas em seu país ficariam muito felizes de ter ao menos réplicas desses objetos.

Para ele, o principal valor do Nga Mauk é educacional, motivacional: o considera um talismã que poderia ajudar a unir e reconstruir seu país.

"O Nga Mauk nos lembra do que tivemos e do que pudemos fazer, nos recorda que já fomos uma nação orgulhosa e independente, com uma rica história. Hoje, não temos nada desse passado para ensiná-lo às próximas gerações."

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