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Moradores de favela na zona sul afirmam não ter para onde ir

Moradores dormiram em calçada próxima à favela | Rivaldo Gomes/Folhapress
Moradores dormiram em calçada próxima à favela | Rivaldo Gomes/Folhapress

Exatos dois anos e quatro dias após um incêndio ter queimado quase todos os barracos da favela do Buraco Quente, na zona sul de SP, os cerca de 600 famílias do local revivem o drama de terem de reconstruir seus barracos e dormir ao relento. Até a noite de domingo, antes de o fogo começar a se alastrar, havia aproximadamente 2 mil pessoas na área, também conhecida como “favela do Piolho”, que fica na avenida Jornalista Roberto Marinho, na região do Campo Belo.

Na tarde desta segunda-feira, enquanto as crianças foram deixadas em uma igreja próxima à favela, os pais trabalhavam na reconstrução de seus barracos. “Faltei no trabalho para limpar a minha área. Na semana que vem, devo começar a reconstruir tudo. Já perdi minha casa, espero não perder meu trabalho também”, disse Zilma Ernesto, 42 anos, auxiliar de limpeza do aeroporto de Congonhas.

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Filho mais velho de uma família de sete irmãos, que veio do Ceará a procura de uma vida melhor, Rodolfo Silva, 18 anos, era o mestre de obras da reconstrução de sua casa nesta segunda-feira. Enquanto Rodolfo e o pai, Alcides, pegavam no batente, a mãe, Aparecida, buscava alimentos, e os irmãos mais novos iam até a obra do monotrilho pegar madeiras para a reconstrução. “No dia 3 de setembro de 2012, também perdemos tudo. Demoramos sete meses para reconstruir. Gastamos R$ 3.500. Agora vai ser tudo de novo”, afirmou Rodolfo.

A vendedora de sorvetes Solange Souza, 28 anos, diz que mora na favela desde que nasceu. «Estou calejada e acostumada com isso aqui. Nem sei se esse foi o pior de todos, mas tá bem feio. Vai ser um trabalho de meses pra tudo voltar ao normal», afirmou.

Suellen da Silva, 20 anos, grávida de 8 meses, dormiu em um colchão colocado em uma calçada na noite entre domingo e segunda-feira. Nesta segunda-feira, o vigilante Gilberto do Nascimento, de 39 anos, cedeu o seu quarto, que não ficou completamente destruído, para a vizinha. «Não é o ideal, mas é melhor do que a rua», conta Nascimento.

O ajudante de limpeza Renan da Silva, 19 anos, juntava os estulhos deixados principalmente pelos colchões, fogões e geladeiras. «Dá pra tirar um almoço com o dinheiro do ferro velho», diz. Ele morava em um barraco de dois andares com a mãe e 11 irmãos. «Era apertado, mas a gente se virava».

Não querem ir para abrigo
Todos dizem que não querem ir para abrigos fornecidos pela prefeitura. A auxiliar de serviços gerais Elaine Alves, 32 anos, diz que morou por 20 anos na rua. «Sempre que fui para os abrigos, me arrependi. Lá se mistura gente de bem, bêbados e drogados. Então é muito desconfortável», diz.

A prefeitura diz, em nota, que disponibilizou colchões, cobertores, cestas básicas, kits de higiene e refeições, além da proposta de auxílio aluguel, de R$ 400 por mês. «A Secretaria Municipal de Habitação vai incluir as famílias desabrigadas no programa de auxílio aluguel, para apoio no custeio com habitação. As famílias que optarem pelo programa vão receber R$ 1.200 a cada três meses, o que equivale a R$ 400 mensais para despesas de aluguel. Essas famílias também serão inseridas no cadastro habitacional para serem beneficiadas com unidades habitacionais definitivas, respeitando a ordem da fila existente», diz a nota.

Em um evento no ExpoCenter Norte, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) afirmou que a polícia vai investigar o incêndio. «Vai haver uma investigação para verificar o que ocasionou o incêndio: se foi curto circuito, ou se foi excesso de carga», disse.

Segundo o Corpo de Bombeiros, o incêndio que atingiu a favela pode ter sido criminoso. O capitão Marcos Palumbo afirma que as suspeitas se dão por conta do tamanho das chamas e pela maneira com que a equipe foi recepcionada. A corporação diz que houve agressões e tiros contra os bombeiros. Palumbo diz que normalmente, quando há incêndios em favelas, os moradores costumam relatar os possíveis incidentes causadores, como curto-circuitos, aparelhos ligados e panelas deixadas no fogo. Desta vez não houve manifestação.

O ajudante de pedreiro Marcos da Silva, 42 anos, diz que não percebeu os tiros na correria para tirar seus objetos pessoais do barraco em que morava, mas conta que as agressões ocorreram porque houve “descaso” por parte dos bombeiros. “Tinham dois carros [do Corpo de Bombeiros] parados. Esperaram o fogo se alastrar por cerca de uma hora e só depois jogaram água. Aí ficamos revoltados e jogamos pedra contra eles mesmo”.

Um dos hidrantes utilizados pelos bombeiros no combate às chamas estaria com entulho, o que impediu que a água saísse com a pressão necessária. A Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo) afirmou que a responsabilidade pela manutenção dos hidrantes da cidade é da prefeitura.

Em nota, a administração municipal afirmou que a responsabilidade é conjunta dos bombeiros e da Sabesp. «À concessionária local dos serviços de águas e esgotos é atribuída a competência para o projeto, instalação, substituição e manutenção dos hidrantes urbanos», diz em nota.

A corporação diz que 96 homens, em 37 viaturas, foram enviados ao local. Dois moradores se feriram levemente. Um teve intoxicação por causa da fumaça, outro teve queimaduras de segundo grau nos membros inferiores e o terceiro passou por crise nervosa.

São Paulo já teve 51 incêndios em favelas em 2014

A cidade de São Paulo teve, em média, mais de 7 incêndios em favelas todos os meses desde o começo de 2014. De janeiro a julho, 51 comunidades pegaram fogo – 78% do total verificado no ano passado.

A pesquisadora Ana Paula Bruno, que estudou as ocorrências nas favelas de São Paulo nos últimos 20 anos, concluiu que 30% dos casos são intencionais.

Segundo a arquiteta doutora pela USP (Universidade de São Paulo), as comunidades localizadas em áreas centrais estão mais vulneráveis, já que crescem de forma mais precária e com materiais de maior potencial inflamável. «É uma situação quase de vigilância para que essas comunidades não se consolidem».

Ela acredita que os incêndios em São Paulo só vão diminuir quando um plano abrangente de moradia popular na cidade for elaborado. Enquanto isso não acontece, famílias afetadas ficam desabrigadas por anos. Só no incêndio da Favela do Buraco Quente, mais de 600 perderam as casas.

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