Estilo de Vida

Fotógrafa registra a rotina da avó que perdeu a memória aos 95 anos

Armelinda Canton teve cinco filhos, 19 netos e 25 bisnetos, mas hoje pouco se lembra dos familiares, que usam fotos antigas para estimular sua memória.

Os olhos sempre atentos e o sorriso constante são algumas das características de Armelinda Canton. Matriarca de uma família de sete filhos, ela dedicou boa parte da vida aos cuidados com a casa.

Desde os 20 anos, também trabalhou, ao lado do marido, em um sítio. Hoje, aos 95 anos, a idosa não se recorda da própria história. Sua memória se tornou falha após ela desenvolver demência, doença que vem se agravando há quatro anos.

Diante desse quadro, uma neta, Emanuelle Rigoni, de 30 anos, iniciou um projeto fotográfico. Em março, a fotógrafa, que vive em Cuiabá (MT), passou oito dias convivendo intensamente com Armelinda, que mora em uma comunidade rural no interior de Palmitos (SC). Emanuelle registrou o cotidiano, os hábitos e o modo como a matriarca da família lida com a progressiva perda de memória e com as consequências de um câncer de pele.

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«Desde a infância, sempre fui próxima da minha avó e passava as férias na casa dela. Eu cresci tendo ela como um exemplo de mulher forte. Agora, quero ter esse registro dos últimos anos de vida dela», relata.

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Quando a demência avançou, Armelinda foi se esquecendo dos familiares. Hoje, já não reconhece grande parte deles. A falta de memória da matriarca trouxe dificuldades para que Emanuelle conseguisse realizar o projeto.

«No primeiro dia, apenas observei a rotina dela. No segundo, ela se escondeu de mim. Mas depois, as coisas melhoraram. Eu me apresentava todos os dias, contava a minha história e conseguia acompanhá-la. No dia seguinte, tinha que fazer tudo de novo, porque ela já havia me esquecido», diz.

Nos dias em que esteve com a avó, Emanuelle conseguiu registrar mais de 600 fotos da idosa e cerca de uma hora de gravação em vídeo. Ela pretende dar continuidade ao projeto. Com os registros iniciais, acredita ter atingido um de seus principais objetivos: acabar com a crença de que a atual fase da vida de Armelinda é de extrema tristeza.

«Eu acabei vendo esse momento da vida dela com outros olhos. Percebi que pelo fato de a minha avó sempre ter pessoas ao seu redor, o ambiente em que vive fica mais alegre. As coisas não são tão ruins como eu pensava.»

Mãe, esposa e tataravó

Armelinda nasceu no município de Anta Gorda (RS), em 14 de outubro de 1922. Aos cinco anos, perdeu a mãe. O pai, um imigrante italiano, criou os filhos e os alfabetizou em sua língua nativa. Aos 16 anos, ela se casou.

Quatro anos mais tarde, já com três filhas, mudou-se com a família para um sítio, no distrito de Santa Lúcia, em Palmitos. «Quando eles chegaram, não tinha muita coisa no lugar. Eles foram construindo uma casa e plantando para sobreviver e comercializar», relata Emanuelle.

Desde que chegou à propriedade rural, Armelinda não se mudou mais. Ali, viveu toda a vida. Junto com o marido, cuidava das plantações e dos animais. «Ela era muito nova e tinha que fazer muitas coisas. A vida dela foi muito sofrida», detalha a neta. No sítio, a matriarca viu os filhos crescerem e irem embora – apenas uma ainda vive no local.

Há 23 anos, a idosa se tornou viúva. O marido morreu de cirrose hepática. Desde então, ela vive com uma de suas filhas – a de número cinco – e o genro, responsáveis por cuidar dela. «Essa minha tia se dedica aos cuidados com a mãe há anos. Esse foi um dos pontos que fiz questão de registrar. Mesmo com essa convivência diária, a minha avó não se lembra mais da filha», conta a fotógrafa.

Apesar de viver em uma região rural, considerada distante dos demais parentes, a matriarca costuma receber frequentes visitas de grande parte da família e também de amigos. «Esse convívio com muitas pessoas a ajuda a enfrentar essa etapa da vida.»

A idosa tem 19 netos, 25 bisnetos e quatro tataranetos. Em datas comemorativas, a família costuma se encontrar no sítio em que Armelinda vive. «Nós somos descendentes de italianos, então, sempre tivemos o costume de nos reunir, mesmo após a morte do meu avô. Desde que sou criança, a gente se reúne embaixo de uma imensa árvore de nozes, que foi plantada pela minha avó. Lá, a gente faz todas as comemorações», conta Emanuelle.

Nas reuniões familiares, Armelinda não se recorda de ninguém. Para auxiliá-la, os parentes mostram fotografias antigas. «Muitas vezes, ela reconhece a pessoa na imagem, como era antigamente, mas não acredita que seja a mesma que está ao seu lado. É como se, para ela, a pessoa não crescesse nem envelhecesse e tivesse que ser para sempre do jeito que está na foto.»

A matriarca não se recorda nem mesmo da maioria dos filhos. «Ela se lembra apenas das três primeiras filhas, mas só consegue se recordar delas em fotos antigas. Ela não acredita que sejam as mesmas que estão ali pessoalmente, ao lado dela», relata Emanuelle. Para não desapontar os parentes, muitas vezes Armelinda prefere disfarçar a falta de memória. «Ela diz para a pessoa que se lembra dela, mas depois vira pro lado e fala para alguém que não se lembra de nada.»

Em meio às lembranças que desapareceram, Armelinda não se esquece do pai, já falecido. Ele é uma das poucas recordações que a idosa possui.

«A minha avó sempre diz que ele está esperando por ela na casa em que viviam quando ela era menor. A gente acredita que ela possa pensar isso porque não chegou a ir ao velório dele, porque foi em um local muito distante», conta a neta. Outra pessoa de quem ela se recorda é o falecido marido. «Ela sabe que ele morreu, tanto que se considera viúva. A minha avó se lembra que eles produziam vinho e ele bebia muito. Ela tinha raiva disso.»

Doenças

A demência de Armelinda foi diagnosticada há quatro anos. No início, ela se esquecia de situações recentes, depois também passou a não se lembrar de fatos antigos, como os laços familiares. «Há quase um ano, ela perdeu praticamente toda a memória. Ela já até fugiu de casa e, às vezes, não se recorda nem do próprio nome», conta Emanuelle.

Desde o avanço da doença, a idosa passou a ter dificuldades de diálogo. «Antes, ela falava dois idiomas, o italiano e o português. Agora, se alguém conversa com a minha avó em português, ela não entende mais e precisa de tradução.»

Os médicos que atendem a idosa informaram que os indícios são de que ela tenha mal de Alzheimer. «Eles acreditam que isso tenha causado a demência. Mas a minha família ainda não decidiu se vai procurar tratamento, porque temem que ela tenha que tomar mais medicações e isso a afete. Hoje ela está bem e tem saúde, apesar de tudo, então nosso objetivo é deixá-la viver da melhor maneira possível.»

De acordo com levantamento do Ministério da Saúde, 7,1% dos idosos com mais de 65 anos possuem demência no Brasil. Destes, 55% dos casos ocorrem em razão do mal de Alzheimer.

O psiquiatra Sérgio Nicastri, doutor em Medicina pela Universidade de São Paulo, explica que a demência causa perda da capacidade mental. A doença, muitas vezes, se inicia com problemas de atenção e de memória. «A pessoa vai tendo lapsos de memória, vai deixando de reconhecer os outros e começa a ter dificuldades de localização no tempo e no espaço», detalha.

O profissional relata que a doença costuma ser ocasionada por diversas mazelas. «A demência é a manifestação de algo que atinge o cérebro. A doença de Alzheimer é uma das principais causas. Mas também há outras causas, entre elas doenças cardiovasculares, infecções ou traumatismo craniano grave», diz.

Ainda há dificuldade para diagnosticar pacientes que são acometidos pelo mal. A constatação só pode ser feita com biópsia cerebral – raramente realizada. Na prática, o diagnóstico ocorre por meio da manifestação de sintomas. «Esse é um diagnóstico presuntivo, ou seja, há uma probabilidade de ser doença de Alzheimer», pontua o médico.

Ele conta que os medicamentos não impedem que o paciente passe por progressiva perda de memória. «Os remédios ajudam a melhorar o funcionamento dos circuitos cerebrais mais afetados pela doença, mas não põem o dedo na ferida do processo da doença, porque não conseguem deter sua evolução.»

Além da demência e da suspeita de Alzheimer, Armelinda também tem câncer de pele, descoberto há 20 anos. «Ela fez diversos tratamentos contra as feridas que tem na pele, mas ainda assim, como ficou por muitos anos exposta ao sol e sem proteção, o quadro foi se agravando», detalha Emanuele.

Os familiares cuidam diariamente dos ferimentos da idosa. «Hoje, ela não sabe que tem essa doença. Para ela são apenas feridas. Acredito que isso a ajude a não encarar como algo complicado. Mas é um quadro grave de câncer de pele», explica.

Os problemas de saúde não acabaram com a alegria de Armelinda, que passa o dia inteiro com sorriso no rosto e andando pela casa. «Apesar de tudo, ela é alegre. A minha avó é fissurada em dobrar roupa. Ela pega todas as peças da casa e fica dobrando. Acaba sendo uma situação engraçada», relata Emanuelle.

O projeto

Nas imagens feitas nos dias em que esteve com a avó, a fotógrafa registrou momentos como os almoços, as visitas de amigos e familiares de Armelinda, o banho e outros detalhes do cotidiano. «Eu tinha registros da minha avó bem-arrumada nas festas. Mas essa não é mais a realidade dela, por isso meu objetivo agora é mostrar os últimos anos de vida dela», conta.

A ideia para registrar o atual período da vida da avó surgiu após a Emanuelle fazer um curso a distância com a fotógrafa americana Annie Leibovitz, em janeiro. «Ela falou muito sobre a fotografia documental e o desafio de fotografar alguém da nossa família, porque é muito mais difícil que fotografar um desconhecido. Como eu já tinha essa vontade de registrar imagens da minha avó, iniciei o projeto», detalha Emanuelle, que há 12 anos trabalha com fotografia.

Em outubro, quando a avó completar 96 anos, a fotógrafa pretende fazer novos registros. «A família toda vai estar reunida para comemorar o aniversário dela», diz. Para Emanuelle, o fim da vida da avó também representa o encerramento de uma geração de sua família. «Eu não sei como vão ficar as coisas depois que ela não estiver mais aqui. A gente costuma se reunir muitas vezes, mas não sei se continuará assim depois que ela se for.»

Desde que começou a registrar as imagens da avó, a fotógrafa passou a entender melhor a atual fase da vida de Armelinda. «Eu admiro muito o fato de ela nunca perder a alegria. Eu acho que lá no fundo, de certa forma, ela sente carinho, amor e confiança por todos que estão próximos. A realidade dela, atualmente, não permite que ela se lembre o que viveu e as coisas que passou, mas fico mais tranquila em saber que ela aprendeu a ser feliz», conta.

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