Estilo de Vida

A língua inspirada nos tubarões que tem dialetos diferentes para homens e mulheres

Idioma que mantém vivas as lendas aborígenes na Austrália – como a fábula do tubarão-tigre – está ameaçado de extinção.

O tubarão-tigre não estava em um bom dia.

Outros peixes estavam provocando ele. Após brigarem, ele se encontrou com o tubarão-martelo e algumas arraias em Vanderlin Rocks, nas águas do Golfo de Carpentária, na Austrália. Era preciso desabafar, antes de partir à procura de um novo lar para chamar de seu.

Essa é uma das lendas mais antigas do chamado Tempo dos Sonhos – mitos e crenças mantidas vivas pelos aborígenes australianos há mais de 40 mil anos. A fábula conta como o tubarão-tigre criou o Golfo de Carpentária e os rios que deságuam nele.

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A história foi transmitida de boca em boca por diferentes gerações do povo aborígene Yanyuwa, que se autodenomina li-antha wirriyara ou «povo da água salgada».

Ao navegar ao longo dos penhascos e rochas da Ilha Vanderlin, em direção à foz do Rio Wearyan, nosso barco foi rodeado por peixes e dugongos (mamífero herbívoro marinho). Mas tentávamos avistar, sob as ondas, as barbatanas de um tubarão, seguindo o trajeto da lenda da criação.

A jornada do tubarão-tigre foi, sem dúvida, desafiadora. Ele construiu um caminho pelo golfo, abrindo piscinas naturais e rios na paisagem. E foi rejeitado por muitos animais ferozes, que não queriam viver com ele.

Um pequeno canguru chegou a atirar pedras quando o tubarão perguntou se poderia morar com ele. Mas foi enquanto nadava, diz a lenda, que o animal ajudou a criar as águas do Golfo de Carpentária como conhecemos hoje.

Tradição marcante

«Os tubarões-tigre são muito importantes no Tempo dos Sonhos», diz o ancião aborígene Graham Friday, que é guarda marítimo e um dos poucos que ainda falam fluentemente a língua yanyuwa.

Alguns nativos ainda acreditam serem descendentes do tubarão-tigre. E não é à toa que eles são conhecidos por falar a «língua do tubarão-tigre» – há diversas palavras para se referir ao animal e ao mar no idioma yanyuwa. Além disso, o povo tem o costume de pescar peixes, tartarugas, e dugongos nas águas do golfo, mas muito raramente tubarões.

Seu território abrange cinco ilhas principais e mais de 60 ilhotas sedimentares, espalhadas por 2,1 mil quilômetros quadrados, que formam o arquipélago Sir Edward Pellew. A ilha Vanderlin é a maior e mais a leste, com 32 quilômetros de norte a sul e 13 quilômetros de largura.

O tubarão-tigre de 5,5 metros, que viajava todos os anos milhares de quilômetros da costa até o Oceano Pacífico, é uma figura mitológica poderosa. Mas os ambientalistas estão preocupados com seu futuro – o animal foi classificado pela União Internacional para a Conservação da Natureza como uma espécie «quase ameaçada» de extinção.

«Não há mais muitos tubarões. Mas a fábula do Tempo dos Sonhos mostra que já houve um dia «, diz Friday.

Segundo cientistas da Universidade de Adelaide, na Austrália, as mudanças climáticas estão influenciando a redução no número de tubarões-tigre. O aquecimento das águas tem um efeito em cadeia sobre o crescimento da espécie e sua capacidade de nadar longas distâncias.

Embora o tubarão não seja mais visto com frequência nas águas da região, o povo ainda se refere a ele com respeito, como o doador da vida e criador daquela terra.

Parte do trabalho de Friday consiste em patrulhar as ilhas do golfo e monitorar o número de animais marinhos na região. Ele também educa as pessoas sobre a filosofia da pesca – você só pega das águas o que precisa para se alimentar.

Além disso, e tão importante quanto, ele está ajudando a ensinar a língua yanyuwa e o significado cultural da fauna marinha aos jovens.

Cabe ainda aos guardas marítimos conservar os espaços para rituais e cemitérios das ilhas, assim como a antiga arte rupestre, que, embora muito desgastada, ainda apresenta imagens de tubarões.

«Faz sentido ter guardas marítimos aborígenes para cuidar dos mares. Nós conhecemos a região e sabemos como pescar de forma sustentável», avalia.

Na «terra da água salgada», ouvi muitas vezes a expressão «todo mundo olha em direção ao norte do golfo», de onde os tubarões chegariam. No entanto, poucos australianos ou turistas vão tão longe – como o professor e linguista John Bradley, autor do livro Singing Saltwater Country («Cantando a terra da água salgada», em tradução livre). Foi na obra dele que li pela primeira vez sobre a região. A paisagem aqui é plana, quente e esparsa – para compreendê-la, você realmente precisa conhecer a língua e as lendas nativas do povo Yanyuwa.

O yanyuwa é um idioma bonito e poético. Sua cadência soa como o mar, que descreve tão perfeitamente. A linguagem expressa, com precisão, um senso de lugar. E narra, muitas vezes, com uma única palavra fenômenos naturais complexos, revelando quanto os aborígenes estão em sintonia com a natureza.

Do barco, sob o sol da manhã, avistei raios de luz se movendo pela água.

«Yurrbunjurrbun», traduziu Stephen, meu guia, que tem ascendência aborígene e conhece um pouco da língua.

Enquanto navegávamos, nuvens passageiras lançaram suas sombras na superfície do mar.

«Isso se chama ‘narnu ngawurrwurra’ em yanyuwa», acrescentou Stephen, descrevendo exatamente o que eu estava vendo.

Repeti as palavras, sentindo seu peso e ressonância.

Dialetos por gênero

O que é especialmente inusitado no yanyuwa é que se trata de uma das poucas línguas no mundo em que homens e mulheres falam dialetos diferentes.

Atualmente, apenas três mulheres são fluentes no dialeto feminino, enquanto Friday é um dos poucos homens que ainda sabem o masculino. Os aborígenes foram forçados a aprender inglês ao longo das últimas décadas – fazendo com que agora somente algumas pessoas mais velhas se lembrem da língua.

Friday conta que aprendeu o idioma com as mulheres de sua família quando era criança. E, no início da adolescência, parentes do sexo masculino ensinaram a ele o dialeto dos homens. Embora as mulheres compreendam o dialeto masculino, elas não o utilizam. E vice-versa.

Ninguém soube me explicar a origem de dois dialetos distintos. Talvez seja porque homens e mulheres desempenhavam papéis diferentes e passavam pouco tempo juntos há milhares de anos. Ou também poderia ser um sinal de respeito não falar o dialeto do outro.

Alguns aborígenes da região me disseram: «É apenas como sempre foi.»

Mas o que se sabe é que a língua yanyuwa tem um forte vínculo com o tubarão.

«A língua nos faz compreender o tubarão. As cinco palavras diferentes que homens e mulheres têm para tubarão mostram o quão próxima é a relação dos yanyuwa com o animal», afirma Friday.

As palavras que as mulheres usam para se referir ao tubarão estão ligadas ao aspecto nutritivo do animal, como provedor de alimento e vida, enquanto as expressões masculinas remetem a «criador» ou «ancestral».

Você poderia ser punido se não falasse o dialeto apropriado para a ocasião.

«Está vendo aquelas pedras ali? Se você infringisse as regras, poderia ser mandado para lá!», contou Stephen, apontando para Vanderlin Rocks.

Tive a sensação que ele estava dramatizando um pouco a situação – talvez para me fazer parar de repetir tudo que ele dizia em yanyuwa. Mas a verdade é que a bela sonoridade da língua contrasta com a rigidez que envolve seu uso.

Porém, o idioma yanyuwa não se resume a dialetos distintos para homens e mulheres – há ainda um específico para cerimônias e rituais. Fora a «linguagem de sinais», que segundo Bradley, era útil na hora de caçar, quando precisava haver silêncio, ou para avisar que forasteiros estavam entrando em um local sagrado. Mas atualmente poucas pessoas se lembram dos gestos que eram usados. Além disso, as crianças também aprendiam a «linguagem de cordas», amarrando palha ou barbante, de acordo com padrões específicos, para representar criaturas e frutos do mar.

A preservação do idioma yanyuwa está vinculada à conservação da cultura e da vida marinha. Linguistas, como Bradley, estão trabalhando com Friday e outros nativos para salvar a língua escrita. Sem ela, será difícil para os yanyuwa passarem adiante seu profundo conhecimento do mar e de suas origens.

«O inglês simplesmente não entende o mar como o yanyuwa», resume Stephen.

Em 2015, o governo australiano devolveu partes do golfo aos yanyuwa, após uma longa batalha pela reivindicação de terras na região, que começou na década de 1970.

Quando saí do território dos tubarões-tigre, fiquei contente em saber que guardas marítimos que conhecem tão bem essas águas estão tomando conta da região, trabalhando para preservar não só a fauna marinha, mas a língua nativa – ambas ameaçadas.

«É o que chamamos de ‘à prova de futuro'», afirma Bradley.

É salvar uma antiga língua marítima para as futuras gerações poderem aproveitar.

Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Travel.

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