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Da autoflagelação à “farra” do chocolate, a origem dos rituais que marcam a Páscoa cristã

Para o cristianismo, a Semana Santa é o evento com o qual Deus concedeu vida eterna aos homens de fé; algumas regiões da Calábria ainda promovem rituais de autoflagelo.

A comemoração da Semana Santa, a apoteose da fé católica, representa a morte e a ressureição de Jesus. Para o cristianismo, é o evento com o qual Deus concedeu vida eterna aos homens de fé.

E para celebrar, além da liturgia oficial, comum em todas as igrejas do mundo, a comunidade católica conta com inúmeras tradições, que vão desde presentear amigos e parentes com ovos de chocolate, jejuar ou não comer carne na Sexta-feira Santa, benzer alimentos, malhar o Judas, participar de procissões carregando uma cruz e até autoflagelar-se.

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As festividades começam no Domingo de Ramos, que relembra a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, prosseguem até a Sexta-feira da Paixão, com a crucificação e morte de Jesus no Calvário, e termina com a sua ressurreição, celebrada no domingo de Páscoa.

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Em muitos países, todavia, a festa está cada vez mais relacionada ao consumo de ovos de chocolate. A simbologia do ovo deriva de tempos remotos. Séculos antes do nascimento de Jesus já se trocavam ovos de galinha para celebrar o fim do inverno e a chegada da estação das colheitas.

Com o surgimento do cristianismo, esta tradição passou a ser associada também à ressurreição, ao renascimento dos homens de fé.

A partir de então, os devotos começaram a pintar os ovos de galinha para festejar. Os monarcas europeus também doavam ovos ricamente decorados para celebrarem a Páscoa.

O consumo de ovos de chocolate foi a transformação mais recente desta tradição. A partir do século 17, quando o cacau começou a chegar ao Velho Continente, a fabricação de chocolates estendeu-se também ao costume pascal. Os confeiteiros franceses foram os primeiros a preparar os ovos de chocolate como acontece ainda hoje.

E se para alguns este gesto tem se transformado em alvo de especulações comerciais que poderiam ofuscar ou até mesmo cancelar o significado original da celebração, o italiano Roberto Cipriani, um dos mais importantes sociólogos do mundo em matéria de religiões, vê a troca de ovos de Páscoa como algo positivo.

"Ainda que as pessoas não tenham uma consciência plena, não tenham lido a Bíblia nem participado de catequeses preparatórias para a Semana Santa, e mesmo que prevaleçam costumes como viajar no feriado ou preparar determinadas refeições, como a carne de cordeiro no almoço de Páscoa na Itália, os elementos conectivos continuam presentes", diz em entrevista à BBC Basil.

Cipriani, autor da teoria da religião difusa, rebate as preocupações de que a Páscoa esteja perdendo o valor entre católicos. "A data é, no mínimo, uma ocasião para as manter relações de amizade, de solidariedade e compartilhamento."

"Se eliminarmos tudo, os ovos de chocolate, o almoço especial no domingo, a troca de mensagens de Boa Páscoa, fica um vazio. O simbolismo ainda é forte. Quando você vê uma cruz, sabe o que significa".

Ritos paralelos

"As celebrações populares são ritos paralelos aos que a Igreja realiza dentro dos templos", explica o sociólogo.

De acordo com Cipriani, as festividades religiosas, especialmente durante a Semana Santa, eram as únicas ocasiões em que estes grupos de pessoas podiam exprimir-se de forma alternativa ou até mesmo contraposta à Igreja oficial.

"Estas manifestações ganharam força após o Concílio de Trento, com o qual a Igreja Católica promoveu, entre os anos de 1545 e 1563, medidas que tinham o objetivo de reavivar a fé e a disciplina religiosa".

"Participar de procissões carregando uma cruz ou jejuar são também ocasiões de penitência, de sofrimento, um modo de compartilhar da dor e da morte de Cristo."

"Mesmo que os sacerdotes também participem e façam preces durante as procissões numa tentativa de contrastar ou ao menos contrabalançar o caráter laico destas manifestações, os protagonistas são sempre as confraternidades, as pessoas do povo que dão vida às celebrações".

Em algumas cidades italianas, as festividades mantêm as mesmas características há centenas de anos. Duas delas, Chieti e Orte, disputam o recorde de procissão de Páscoa mais antiga do país, ambas datadas em 842. Nesta última, um vilarejo com cerca de 8 mil habitantes, na Sexta-feira da Paixão os peregrinos caminham durante a noite, descalços e com correntes amarradas ao tornozelo. Em Taranto, os fiéis se revezam em quase 40 horas de procissão contínua.

Cultos sangrentos

Muitas destas tradições populares se mesclaram ao longo dos séculos. "No caso da Itália, por exemplo, a Espanha teve um papel decisivo durante o período de sua dominação, especialmente no sul do país, em localidades como Sicília, Calábria e Campanha, com a introdução de seus cultos exuberantes, ricos e muito atrativos".

É o caso dos ritos de autoflagelação, que ainda estão presentes em algumas localidades da Calábria, como em Verbicaro e Nocera Terinese. Nestes dois vilarejos, durante a Semana Santa alguns devotos percorrem as ruas e igrejas da cidade chicoteando as próprias pernas até sangrarem. Durante o percurso deixam manchas de sangue na fachada dos edifícios. Os espetáculos atraem católicos e TVs do mundo todo.

"Os episódios de autoflagelação na celebração da Semana Santa acontecem também no México, no Peru e até nas Filipinas, onde alguns fiéis chegam a submeter-se a uma real crucificação".

Oficialmente, a Igreja é contrária a estas manifestações cruéis. "Mas de certa forma aceita e tolera", afirma Cipriani.

Em nível global, as celebrações de Páscoa mais importantes para os católicos são a Via Crucis, quando o Papa se locomove em meio aos fiéis com o papa móvel pelas ruas de Roma, do Vaticano ao Coliseu, e a missa do domingo, na praça São Pedro, transmitida pela TV em inúmeros países.

O sociólogo acrescenta que não vê no consumismo, nem em qualquer outro fenômeno, uma ameaça aos valores cristãos. "Conforme com a minha teoria da religião difusa, é improvável que o cristianismo, ou qualquer outra cultura milenar, possa desaparecer de um momento a outro. O motivo são as socializações, a educação, a transmissão através das gerações. Pode haver críticas, resistências, mas ainda assim, tudo procede", diz.

"O cristianismo, assim como o budismo, hinduísmo e islamismo, não vão terminar nos próximos 100 anos."

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