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Quem foi Giordano Bruno, o místico “visionário” queimado na fogueira há 418 anos

De temperamento rebelde e contestador, ele não seria considerado um cientista nos moldes atuais – mas defendeu teorias astronômicas que só seriam comprovadas muitos anos depois.

Há 418 anos, em 17 de fevereiro de 1600, uma quinta-feira ensolarada, Roma presenciou um espetáculo dantesco. Centenas de pessoas lotaram o Campo dei Fiori (Campo das Flores), uma praça no centro da cidade, para assistir à morte na fogueira de Giordano Bruno, por ordem da Santa Inquisição.

O padre, filósofo, místico, poeta, autor de peças de teatro, nascido Filippo Bruno em 1548 em Nola, no reino de Nápoles, pagava com a vida pela ousadia de ter desafiado a Igreja e discordado das ideias então vigentes, entre as quais a de que a Terra era o centro do universo.

A sentença havia sido proferida oito dias antes pelo papa Clemente 8 depois de sete anos de julgamento, durante os quais Bruno negou-se diversas vezes a renunciar às suas ideias e arrepender-se. Fez mais. Conta-se que, enquanto ardia na fogueira, ainda teve forças para virar o rosto a um crucifixo que alguém lhe havia mostrado.

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No livro As Sete Maiores Descobertas Científicas da História, os irmãos David Eliot e Arnold Brody contam que a história desse desfecho trágico, mas mais ou menos previsível para a época, começou a ser escrita em 1575, quando Bruno leu textos proibidos do filósofo holandês Desidério Erasmo (1466-1536), o que lhe valeu o primeiro processo de excomunhão.

É provável, dizem, que o temperamento inquieto e contestador de Giordano Bruno o tivesse levado por si só à fogueira, mas ter lido Erasmo ajudou a marcá-lo como herege. Na verdade, desde cedo ele mostrou tendências heterodoxas. Ainda noviço, ele atraiu atenção pela originalidade de seus pontos de vista e por suas exposições críticas das doutrinas teológicas então aceitas.

Vida religiosa e conturbada

Assim, não é de estranhar que tenha chamado a atenção da Inquisição desde que começou a se tornar conhecido. Apesar de Bruno, que trocou o nome Filippo por Giordano aos 15 anos, quando entrou para a Ordem Dominicana, ter sempre estado ligado à religião, nunca foi aceito pelos religiosos.

Em 1575, três anos depois de ter sido ordenado padre, o futuro condenado concluiu o curso de teologia no Convento Dominicano de San Dominica de Maggiori, em Nápoles, o mesmo em que havia estudado e lecionado Santo Tomás de Aquino. Foi o início do seu calvário.

Em fevereiro de 1576, ainda em Nápoles, aos 28 anos, Bruno viu-se obrigado a se transferir para Roma para escapar das acusações de heresia. Mas uma vez lá, no Convento de Minerva, ele não alterou sua maneira de ser, e após alguns meses fugiu e abandonou o hábito dominicano. Foi o suficiente para ser sido enquadrado em um segundo processo de excomunhão.

Em abril do mesmo ano, teve de fugir para Genebra, na Suíça, onde se converteu ao calvinismo. Foi uma experiência efêmera. Por ter escrito um artigo no qual criticava um professor calvinista, acabou preso e excluído dessa religião.

Entre 1580 e 1585, Giordano Bruno pôde, enfim, desfrutar de um breve interregno de paz. Deu aulas em Paris, Londres e na Universidade de Oxford e celebrizou-se como autor de obras teológicas. Foi nessa época também que se evidenciaram suas ideias científicas, tendo ele escrito vários textos sobre a teoria de Copérnico – mais tarde abraçada por Galileu Galilei, que também esteve na mira incendiária da Inquisição -, sobre o Sistema Solar, e apresentou a hipótese de que o Universo era infinito.

Segundo o professor Rodolfo Langhi, do Departamento de Física do campus de Bauru da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Bruno conhecia e apoiava a teoria de Copérnico, o heliocentrismo, que dizia ser o Sol o centro do universo. Mas foi além.

"Ele pregava que o Universo era infinito, sem centro, e repleto de mundos habitados, como o nosso", explica Langhi, que desenvolve pesquisas, projetos e publicações na área de Educação em Astronomia.

"Ele disse o seguinte na obra Acerca do Infinito, do Universo e dos Mundos: ‘que haja nesse espaço inúmeros corpos como nossa Terra e outras terras, nosso Sol e outros sóis, todos os quais executam revoluções nesse espaço infinito’."

Além disso, ele também afirmava, por exemplo, que, além de Saturno (o planeta mais distante do Sol conhecido até então), havia outros planetas que giravam ao redor da estrela. Isso foi confirmado com a descobertas dos planetas Urano, em 1781, por William Herschel, Netuno, em 1846, por Johann Galle, e Plutão, em 1930, por Percival Lowell.

Apesar de ter acertado nessas previsões, o modelo cosmológico de Giordano Bruno não estava embalado em dados científicos, mas em crenças religiosas.

Por causa disso e outras "heresias", a partir de 1585, novamente o vento abrasador da intolerância começou a soprar em sua direção. Com as achas da incompreensão e da ignorância, seu inimigos começaram a acender e a alimentar a fogueira que iria devorá-lo.

Com uma coragem beirando a arrogância, entretanto, Bruno manteve sua postura provocativa.

Em 1586, escreveu uma série de artigos insultando altos funcionários do governo e reiterando suas ideias a respeito do Universo. O resultado foi o previsto: teve de fugir de Paris. E de lá para a Alemanha, onde se converteu ao luteranismo. Mas de novo, por pouco tempo. Foi de novo expulso, desta vez pela Igreja Luterana de Helmstedt.

Traição

Em 1591, cometeu aquele que seria, certamente, seu maior erro. Quinze anos depois de deixar sua terra natal, resolveu retornar à Itália a convite de um nobre veneziano, Giovanni Mocenigo, que o alojou em sua casa em troca de aulas de memorização, outra especialidade dele.

No entanto, Mocenigo traiu Bruno, entregando-o à Inquisição veneziana.

Dessa vez, Bruno resolveu se retratar e argumentou que suas ideias eram filosofia e não teologia – portanto, não questionavam o poder da Igreja. Ele deveria ser solto, mas a Inquisição romana exigiu sua extradição. Assim, em 27 de janeiro de 1593, ele tornou-se prisioneiro do Santo Ofício, de onde só saiu para a fogueira.

Até hoje a figura de Bruno e o que ele representa são objetos de discussão. Apesar de suas ideias avançadas para a época, muitos pesquisadores modernos afirmam que ele não era um cientista na acepção que a palavra tem hoje.

"Ele era um pregador", resume o astrônomo Augusto Damineli, professor titular do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (USP).

O físico e astrônomo Othon Cabo Winter, do Departamento de Matemática da Faculdade de Engenharia (FEG), do campus de Guaratinguetá da Unesp, pensa de maneira semelhante.

"Ele era muito bem informado, tinha conhecimento dos avanços astronômicos mais atuais da época, mas não fazia ciência", diz. "Bruno juntava os conhecimentos com suas crenças e fazia especulações e afirmações sem um embasamento científico de fato."

Cientista ou místico?

Há, no entanto, quem pense diferente. É o caso do antropólogo e medievalista português naturalizado brasileiro, João Eduardo Pinto Basto Lupi, pesquisador do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

"Hoje achamos que cientista é alguém agarrado a instrumentos de observação e análise, com tabelas de matemática do lado", diz. "Mas no tempo de Bruno não era assim. Muitos inclusive, como Newton, por exemplo, não deixavam de ser astrólogos, nem de considerar ideias de ciências ocultas."

De acordo com Lupi, o que importava era ter ideias capazes de dirigir o conhecimento sobre o universo, e isso Bruno tinha demais.

"É o que os americanos hoje em dia chamam de ideias seminais, capazes de fertilizar a inteligência", explica. "Mas muitas pessoas continuam agarradas a concepções científicas demasiado racionalistas e positivistas, que não têm mais futuro. E nisso o Giordano Bruno foi um grande orientador da ciência, um cientista visionário. Parecia medieval mas era mais contemporâneo do que muitos hoje em dia."

Mas por que Giordano Bruno incomodava tanto a Igreja?

"Suas ideias tiveram importância política, pois na luta entre a Igreja conservadora (dona do poder) e a burguesia revolucionária (classe em ascensão) ele optou pela revolução", responde Damineli. "Essa foi a principal motivação para a Igreja assassiná-lo. Note que ela reabilitou Galileu, mas nunca cogitou de fazer o mesmo com Giordano Bruno, pois a luta dele era eminentemente política, no sentido de visão do mundo."

Segundo o astrofísico Daniel Brito de Freitas, da Universidade Federal do Ceará (UFC), o principal motivo do incômodo que Bruno causava à Igreja é que ele defendia que o Deus definido pelo Cristianismo era limitado e, acima de tudo, não incorporava a ideia da infinitude dos mundos.

"Ele sugeriu abandonar as Sagradas Escrituras e reescrever Deus levando em conta a existência de outros mundos e outras formas de vida pensante", explica. "Para a Igreja, esse era um ato de blasfêmia do mais alto grau na escala de heresia. Esse foi o motivo pelo qual a Igreja Católica perseguiu e condenou Giordano Bruno à fogueira da Santa Inquisição."

A revolução de Giordano Bruno

Ao receber a sentença, Bruno deu uma prova, se não dessa arrogância que lhe atribuem, pelo menos de desassombro e autoconfiança.

"Talvez vocês, meus juízes, pronunciem essa sentença contra mim com maior temor do que eu a recebo", declarou a seus algozes.

Apesar disso, ainda lhe foram dados oito dias para ver se se arrependia. E embora suas ideias científicas desafiassem os preceitos de então, a Igreja não admite que ele tenha sido condenado por esse motivo, mas sim por questões teológicas.

Mesmo com as controvérsias, a maiorias dos cientistas de hoje concorda que Bruno foi um visionário que anteviu e levantou questões que vieram a ser comprovadas ou ainda intrigam séculos mais tarde.

"São ideias e questões bem atuais", diz Winter. "Milhares de planetas ao redor de outras estrelas já foram descobertos. A questão da existência de vida fora da Terra é um dos temas mais relevantes para a ciência na atualidade e acredita-se que será verificada ainda neste século."

Damineli lembra que Bruno se entusiasmou com as grandes navegações da época dos descobrimentos, que estavam ultrapassando os limites imaginários dos oceanos e colonizando novos mundos. A partir disso, ele imaginou naves movidas a vento solar, que só entraram no campo científico cerca quatro séculos mais tarde, e que atravessariam o "oceano escuro de vácuo" para aportar em outros planetas", diz.

Segundo Damineli, essas novas "grandes navegações no espaço" são análogas às anos 1500-1600 e têm um potencial de revolução industrial ainda maior que as da caravelas.

"Desta forma, a visão de Giordano Bruno vai muito além de sua época, para tempos em que ainda não entramos, mas estamos no limiar."

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