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“Um nazista na família”: o escritor que descobriu o passado vergonhoso do avô em campos de concentração

Britânico Derek Niemann procurava pela casa onde pai cresceu, mas acabou se deparando com um segredo que sua família escondeu por mais de 50 anos: o avô era capitão da SS, a força nazista.

O escritor britânico Derek Niemann acompanhava a mulher, Sarah, em uma conferência em Berlim quando decidiu procurar pela casa onde seu pai cresceu, ainda durante a Segunda Guerra Mundial. Não imaginava, porém, que acabaria descobrindo um segredo que sua família escondeu por mais de 50 anos.

Ele queria apenas tirar umas fotos. Mas, ao procurar pelo endereço na internet, acabou encontrando um documento que dizia "SS-Hauptsturmführer Karl Niemann". Além de indicar o nome do avô dele, antecedido pela patente da organização paramilitar do partido nazista, o material indicava ainda que aquele capitão em questão estava diretamente ligado a crimes contra a humanidade e ao uso de mão de obra escrava.

"Lembro de me recostar na parte de trás da cadeira, ir ao quarto, que ficava ao lado, e dizer à Sarah: Acabei de encontrar meu avô."

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Sarah também guardou aquele momento na memória. "Perguntei o que ele queria dizer com ‘acabei de encontrar meu avô’. Ele me explicou. Lembro-me do rosto dele, uma expressão de choque absoluto."

Nesse momento, a vida de Niemann deu uma guinada.

"Sou um escritor, escrevia sobre a natureza. Escrevia sobre abelhas e borboletas. Não escrevia sobre nazistas", diz.

Mas a descoberta o fez dar início a uma pesquisa que durou anos. Ele explorou arquivos, foi à Alemanha várias vezes e teve conversas difíceis com integrantes da família na tentativa de reconstruir e contar a verdadeira história de um homem comum no livro A Nazi in the Family: The Hidden Story of an SS Family in Wartime Germany ("Um nazista na família: a história oculta de uma família da SS em tempos de guerra na Alemanha", em tradução livre), publicado em inglês em 2015.

A verdade em negativos

Um burocrata de escritório: assim o pai de Derek, Rudi, descrevia Karl Niemann. Mas, na verdade, ele era um oficial da SS, com patente equivalente à de um capitão, responsável por organizar a mão de obra escrava nos campos de concentração em uma escala colossal.

Karl tinha a fotografia como hobby, e isso ajudou a pesquisa de Derek e Sarah. O casal descobriu cerca de 500 negativos, um verdadeiro tesouro deixado na casa em Berlim quando foi abandonada abruptamente no fim da guerra.

Ironicamente, os negativos foram salvos por uma família judia que ficou com a casa como parte de um processo de reparação dos danos daqueles anos sombrios.

As fotos revelavam a intimidade da amorosa família de Karl, que tinha uma contraditória vida dupla.

Esse homem foi a todos os campos de concentração, carregou os livros com balanços financeiros e dirigiu uma empresa da SS que fabricava móveis e materiais de guerra usando trabalho escravo.

À noite, ao chegar em casa, esse mesmo homem cuidava do jardim e ajudava a mulher a cuidar dos quatro filhos. O mais velho, Dieter, morreu nos últimos dias da guerra, quando lutava pela divisão nazista de veículos blindados de combate (Panzer).

Homens esqueléticos vestindo uniformes listrados chegaram ir à casa de Karl para fazer trabalhos ocasionais. A mulher dele, Minna, dava comida, ainda que a ordem fosse para que não os alimentasse.

O livro de contabilidade indicava um certo lamento em relação aos desafios financeiros de gerir um negócio que continuou a matar seus trabalhadores e à infeliz necessidade de comprar caixões para eles.

"Meu avô tinha uma certa mediocridade fracassada", diz Derek. "Foi demitido do trabalho. Se sentia decepcionado com a vida. Acredito que a ideia de usar um uniforme glamouroso e de ser alguém lhe parecia atrativo."

O escritor diz que o avô se sentia importante. "Chegou ao ponto em que um chofer aparecia e o levava ao trabalho. As pessoas o obedeciam. Era um homem de poder. Acredito que gostava disso."

Palestra e cheiro de carne

Anualmente, 27 de janeiro é o dia de se lembrar internacionalmente o Holocausto. Por isso, Derek falou publicamente sobre o avô na semana passada. Diante de uma plateia de judeus, alguns deles sobreviventes dos campos de concentração, o escritor compartilhou um pedaço de sua própria história.

A BBC acompanhou a palestra, que aconteceu no noroeste de Londres e foi organizada pela B’nai B’rith, uma das mais antigas organizações judaicas, que se dedica à defesa dos direitos humanos.

Derek dividiu com os presentes uma lembrança infantil particularmente impactante narrada pelo pai, mesmo sofrendo de demência.

"Ele se lembrou da presença da família em um quartel da SS (no campo de concentração de Duchau, na Alemanha) e dos pais olhando através de uma janela, de onde era possível ver um edifício baixo, que tinha uma chaminé."

A mãe então perguntou ao marido se ele sabia o que se fazia naquele prédio.

"Não", respondeu ele.

"Estão queimando judeus. Estão os matando e queimando seus corpos", disse ele.

"Não, não fariam isso", insistiu o pai.

"Sim, estão fazendo isso. Não está sentindo o cheiro de carne?"

Durante a pesquisa, Derek perguntou a historiadores sobre a postura do avô, que se recusou a reconhecer os extermínios em massa.

"Seria possível que meu avô não soubesse o que estava acontecendo? Seria possível ir aos campos de concentração todos os dias, ver figuras esqueléticas, ver agressões, gente sendo morta e não saber o que estava acontecendo?", questionou o escritor.

A resposta dos especialistas foi categórica: "É impossível".

‘Nenhum arrependimento’

Uma pessoa da plateia perguntou a Derek se o processo de "desnazificação" depois da guerra foi eficiente.

O escritor disse não acreditar que tenha havido algum efeito absoluto.

"Meu avô, assim como os outros oficiais da SS, foi submetido a um intenso exercício de lavagem cerebral. Se você analisa os cerca de 300 criminosos nazistas que estavam presos em Landsberg esperando pela pena de morte, nenhum deles, nenhum, manifestou remorso pelo que fizeram", respondeu Derek.

"Eles se refugiavam na religião. Encontravam-se com sacerdotes que os absolviam dos pecados, mas não mostravam nenhum arrependimento. Lavaram o cérebro deles", completou.

O avô do escritor foi levado a campos de prisioneiros, onde ficou por três anos depois do final da guerra. Foi acusado de crimes de guerra e contra a humanidade, mas acabou sendo condenado por um crime de menor grau – ser um seguidor nazista -, porque as principais provas contra ele foram enviadas ao Tribunal de Nuremberg para complementar o processo do superior imediato, que acabou executado.

O relato de Derek emocionou a plateia de judeus. "É impactante escutar que nenhum deles sentiu remorso", disse uma mulher.

"Era como um espelho. Ele estava descrevendo um lado do espelho, o lado alemão. Eu estava olhando a partir do outro lado, porque meu avô esteve em Dachau (como prisioneiro)", disse um homem.

"A ‘banalidade do mal’ é uma expressão que todos já escutamos antes. Isso é um exemplo exato disso, não? Um homem comum fazendo coisas extraordinárias, extraordinariamente ruins", observou outro homem.

Na plateia estava também Noemie Lopian, que traduziu um livro que o pai havia escrito – e que ganhou o título de Uma Longa Noite – sobre seus quatro anos em um campo de concentração.

"No fim do dia, somos todos, entre aspas, seres humanos comuns", disse ela. "E todos temos uma opção. Todos temos a capacidade de fazer o mal."

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