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Morte, discordo de você

Há na morte um cessar de movimentos. O mais emblemático de todos – o batimento cardíaco – é quase sinônimo de vida, mas existem outros, tais como os passos, os gestos, as feições. Há na morte, igualmente, e muitas vezes atrelado aos movimentos, um cessar dos sons. Às vezes pouco notados em vida, eles compõem uma trilha musical que se cala de um momento para o outro, transformando a rotina da casa. Quando já não existe o pisar suave-mas-firme nos degraus da escada, ou o tilintar da colher de chá na borda da xícara, ou o dedilhar decidido no teclado do computador, ou o carrilhão agudo do molho de chaves ao chegar e partir, a morte sussurra sua silente presença.

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E o silêncio faz mais alarde quando se cala uma voz audaciosa, indomável, petulante. Na mesma proporção em que se tem saudade dos movimentos do atleta capaz de impor-se diante dos adversários, e da bailarina que desafia as leis da física com doçura e graça, faz falta a argumentação do implacável estudioso, do intelectual insurgente por natureza. Quantas e quantas vezes nos pegamos saudosos de pessoas ilustres perante as quais sandices ditas ou praticadas por figuras públicas jamais seriam aceitas com passividade, nem que fosse apenas para denunciar a sombra do ato quando exposto a uma outra luz? Deixa lacunas quem habita o contraditório com naturalidade – conforto, até.

Minha irmã e sobrinha lamentam, neste momento, a contundência dos pequenos silêncios deixados por meu cunhado na intimidade da casa, enquanto ao país fará falta a voz inquieta de Cláudio Weber Abramo. Sua biografia atesta relevância e o coloca acima das picuinhas tão valorizadas nestes tempos em que toda poeira ganha dimensão de pedra. Isso me desobriga de fazer um texto laudatório – conteúdo certo nos obituários Brasil afora. Mas, ainda assim, considero necessário ofertar a ele poucas linhas de carinho. Uma parte pela dor sincera que divido em família, outra para dar o justo valor a alguém cuja personalidade colidia com a minha.

Sim, é muito fácil louvar a quem conosco se parece, e este não era nosso caso. Eu, por ser um construtor quase patológico de consensos, estive sempre tensionado pela normalidade com que o conflitante elevava o tom na casa de minha mana. O que, espero, jamais tenha sido compreendido por desamor ou falta de admiração. Nunca foi. E, desde já, desde antes mesmo, insurjo-me contra a morte e sua decisão autoritária e irrevogável de levar cedo demais um homem de estima. Alguém que amava a vida, e Cristina e Isabel.

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