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A curiosa história das renomadas estrelas Michelin na gastronomia

De origens humildes, os irmãos Michelin construíram um império que revolucionou as viagens e transformou Clermont-Ferrand em um motor da produtividade francesa.

As ruas de paralelepípedos e as construções de pedras vulcânicas de Clermont-Ferrand parecem mais estranhas que revolucionárias. Mas essa cidade francesa mudou o mundo das viagens para sempre. Foi onde, em 1889, os irmãos André e Édouard Michelin fundaram sua empresa de pneus.

Com uma arquitetura notável – composta de pináculos negros e hôtels particuliers (espécies de palácios urbanos) – e uma geologia impressionante, Clermont-Ferrand abriga cerca de 145 mil habitantes na região francesa de Auvergne-Rhône-Alpes.

Mas não é só isso que chama atenção para o lugar. O par de inventores mais famoso do local não apenas transformou o transporte moderno, como também criou a marca que hoje entrega o maior prêmio da culinária mundial: as estrelas Michelin, concedidas aos melhores restaurantes do mundo.

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Criando uma tradição

Viajantes devem muito aos irmãos Michelin. Eles tentavam salvar o cambaleante negócio de seu avô, mas acabaram conquistando muito mais. Suas inovações nos pneus, desde pneus de bicicleta removíveis até trens com pneus de borracha, ajudaram a tornar o transporte de pessoas mais fácil e econômico do que nunca. Hoje, é a segunda maior fabricante de pneus do mundo em receita.

E com o lançamento dos guias e mapas Michelin no início do século 20, os irmãos transformaram a marca em sinônimo de viagens e alta culinária. Uma das ações mais inteligentes da empresa foi priorizar a «culinária pela qual vale a pena viajar».

A cobertura dos guias sobre restaurantes regionais de destaque e adegas com rótulos interessantes persuadia os motoristas a viajar ainda mais (e, é claro, eles precisavam de pneus Michelin robustos para fazer suas viagens). Com o advento das estrelas Michelin em 1926, premiando os melhores restaurantes dos guias, os duráveis pneus e a busca pelo boeuf bourguignon excepcional se uniram para sempre.

«A Michelin antecipou a direção para onde o turismo caminhava no início do século 20», disse o professor Patrick Young, especialista em história francesa dos séculos 19 e 20 na Universidade de Massachusetts-Lowell. «O inovador nos Guias Michelin foi a incorporação do transporte de automóveis, suas informações mais detalhadas sobre rotas e seu sistema de classificação para hotéis e restaurantes.»

Clermont-Ferrand ainda permanece como a sede da Michelin. Embora seja uma cidade industrial, ela tem um cenário bucólico: a extensa planície de Limagne ganha contornos da cadeia de montanhas de Chaîne des Puys, inscrita na lista de Patrimônio Mundial da Unesco em 2018, devido às suas impressionantes propriedades geológicas.

Essas 80 colinas e picos são os restos de vulcões cujas atividades cessaram há mais de 7.000 anos. O Puy de Dôme, com 1.465 metros de altura, só é visível de Clermont-Ferrand se você subir os degraus do ícone da cidade, a Catedral Notre-Dame.

Marcas na história

Os viajantes não precisam se afastar muito do centro histórico de Clermont-Ferrand para aprender sobre o legado da Michelin. Apenas a alguns quilômetros a leste fica a L’Aventure Michelin, uma galeria e museu interativo instalado numa construção do início do século 20 na maior unidade industrial Michelin de Clermont-Ferrand. O espaço recebeu mais 600 mil visitas desde sua inauguração em 2009.

«A história da Michelin e de Clermont-Ferrand estão intimamente ligadas», disse Stéphane Nicolas, curadora da L’Aventure Michelin. «O objetivo da L’Aventure Michelin é compartilhar a história, a cultura e os valores da Michelin com o maior número de pessoas possível.»

O primeiro sucesso dos irmãos Michelin foi uma patente para o pneu removível, testado na corrida de bicicletas de Paris-Brest-Paris, em 1891. Em seguida, eles inventaram o primeiro pneu de automóvel, depois o primeiro capaz de suportar velocidades acima de 100 km por hora e, logo, o primeiro aro removível.

A partir de 1929, eles se expandiram para o setor ferroviário: as locomotivas Micheline, com pneus de borracha, percorreram os trilhos a partir de 1931.

Os irmãos fizeram parte de uma onda de visionários franceses que incluiu o virtuoso da engenharia Gustave Eiffel, a estilista Coco Chanel e o pioneiro da aviação Louis Blériot, esse último responsável pelo primeiro voo tripulado entre a Grã-Bretanha e a Europa Continental.

Na época, a França rural estava começando a seguir em direção a um futuro industrial. Havia menos de três mil automóveis no país quando os irmãos Michelin se estabeleceram; hoje, são mais de 32 milhões. O museu tem uma gama impressionante de automóveis e uma miscelânea de transportes daquela época em rápida mudança.

«Quando criamos o L’Aventure Michelin, não nos inspiramos em um conceito existente», explicou Nicolas. «Queríamos que a experiência fosse feita sob medida e de acordo com a personalidade Michelin.»

Exibição surreal

O revestimento de metal e o telhado ondulado do museu garantem um aspecto industrial, enquanto as atrações são ocasionalmente surreais: carros explodem em mapas gigantescos, e o mascote da empresa, o Homem Michelin – ou Bibendum, como é conhecido na França – paira alegremente acima das portas.

Nascido em 1898, o inconfundível mascote da companhia Michelin completa 120 anos. Uma exposição no L’Aventure Michelin mostra o melhor lado de um dos mascotes mais antigos do mundo, reunindo 120 desenhos ao longo das décadas, com sua evolução de um bon vivant gorducho soprando um charuto para uma figura mais magra, embora ainda com uma silhueta larga.

A empresa Michelin começou a produzir guias de viagem em 1900, começando com um guia da França que foi distribuído gratuitamente aos motoristas. Uma década depois, mapas de estradas foram incluídos na publicação.

Os livros e mapas incentivavam os motoristas a explorar seu país, fazendo desvios para restaurantes atraentes e pernoitando para prolongar suas viagens – uma iniciativa hábil para incentivar viagens mais longas de carro, o que, por sua vez, significava mais vendas de pneus.

Em 1926, a Michelin estava produzindo guias de viagem mais abrangentes com um novo foco em restaurantes requintados. Sua popularidade disparou em parte graças à confiança que se tem nas avaliações, conduzidas anonimamente por clientes secretos – um processo que permanece até hoje.

Atualmente, a Michelin cobre 34 destinos na Europa, Ásia e Américas, com seu famoso sistema de classificação com estrelas Michelin despertando pavor e glória em restaurantes de todo o mundo. Uma «estrela Michelin» é o objetivo de quase todos os chefs aspirantes.

«Embora tenha mudado ao longo dos anos, Bibendum foi um ícone da masculinidade francesa branca de classe alta», disse Young. «O monóculo, o charuto e a circunferência de Bibendum eram símbolos do homem burguês ocioso, e o sistema de classificação Michelin tornou as normas parisienses e metropolitanas o padrão em toda a França e no mundo.»

Os guias continuam a ser impressos, e a Michelin conseguiu manter sua reputação como um ditador de tendências. Mas esse status é controverso, e as pressões associadas a ganhar ou perder uma estrela muitas vezes chegam às manchetes.

Um chef do Reino Unido, Andrew Wong, comparou a premiação de uma estrela Michelin a se casar; o famoso chef Gordon Ramsay confessou ter chorado quando um restaurante seu passou de duas para nenhuma estrela.

Copa da Aviação

Até as colinas de Clermont-Ferrand tiveram um papel na história da Michelin. Em 1908, os irmãos lançaram a Copa de Aviação da Michelin, com um prêmio em dinheiro de 100 mil francos para o primeiro piloto capaz de percorrer o trajeto de Paris a Clermont-Ferrand em menos de seis horas. Hoje em dia, a paisagem ondulada da Chaîne des Puys é vista do ar por incontáveis voos de parapente.

O legado da Michelin continua a despertar o orgulho dos Clermontois, habitantes de Clermont-Ferrand, enquanto as estrelas Michelin têm o poder de elevar ou destruir carreiras culinárias.

Em alguns lugares, a longeva associação de uma cidade com uma empresa multinacional pode despertar ceticismo. Mas a França é um país que reverencia seus pioneiros da indústria tanto quanto seus artistas. É fácil, então, entender o interesse por explorar uma cidade como Clermont-Ferrand, que é um mosaico do design industrial e do esplendor gótico.

  1. Leia a versão original desta matéria (em inglês) no site da BBC Travel.

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