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O temido “Enem” que sela o futuro dos jovens e paralisa a Coreia do Sul por um dia

Para garantir silêncio para mais de um milhão de estudantes que fazem a prova, lojas e bancos fecham, bolsa de valores abre mais tarde e aviões não decolam.

O «Enem» da Coreia do Sul é uma maratona de oito horas que paralisa o país. Para garantir o silêncio aos alunos que fazem a prova, lojas e bancos fecham, a bolsa de valores abre mais tarde, obras são interrompidas, aviões não decolam e treino militar cessa.

Exatamente às 8:40 do horário local nesta quinta-feira (21:40 de quarta, no horário de Brasília), mais de um milhão de estudantes começaram o exame para o qual se preparam durante a vida toda.

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A prova, Suneung – uma abreviação de Teste de Habilidade Escolar em coreano -, não dita apenas se estudantes irão à universidade, mas pode afetar suas perspectivas de emprego, salário, onde vão viver e seus futuros relacionamentos.

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É a primeira vez que Ko Eun-suh, de 18 anos, faz a prova.

«Para nós, o Suneung é uma importante porta para o futuro. Na Coreia do Sul, ir à universidade é considerado algo muito importante. Por isso passamos 12 anos nos preparando para esse dia. Conheço quem tenha prestado o exame cinco vezes.»

O silêncio que toma conta do país por um dia em novembro é ocasionalmente intrrompido por sirenes distantes – policiais em motos correndo para transportar alunos que estão atrasados para o exame.

Pais nervosos passam o dia em seu templo budista local ou na igreja, segurando fotos de seus filhos. Muitas cerimônias religiosas são propositalmente celebradas no mesmo horário dos exames.

Lee Jin-yeong, de 20 anos, prestou o exame duas vezes antes de entrar na faculdade.

«Na semana que antecedeu o teste eu pratiquei acordar todos os dias às 6h, para meu cérebro estar em sua melhor forma. Ficava me dizendo: ‘você estudou tanto, agora só precisa mostrar que consegue'», diz.

No ano passado, ela chegou na escola às 7:30. Havia uma multidão de alunos mais novos incentivando os mais velhos, cantando e torcendo por eles e também entregando-lhes balas conhecidas como «yeot», de boa sorte.

Mas dentro do edifício, o ambiente é de um silêncio solene.

Na entrada, inspetores com detectores de metal confiscam possíveis distrações: relógios digitais e telefones, por exemplo.

«É tudo muito silencioso», diz Jin-yeong. «Até os professores têm de usar tênis para que seus sapatos não façam barulho e distraiam os alunos.»

Exame elaborado em local secreto

A elaboração do exame é rodeada de mistério. Em setembro, cerca de 500 professores de todo o país são selecionados e levados para um local secreto na província montanhosa de Gangwon. Por um mês, seus telefones são confiscados e o contato com o mundo é banido.

Eun-suh lembra que seu professor de Mandarim contou à classe que ele já tinha sido selecionado uma vez para ajudar a elaborar o exame.

«Na época, ele disse aos colegas que tinha ido viajar. Alguns professores pensaram que ele tinha se aposentado. Ele foi levado a um local secreto e, por um mês, não pode sair nem entrar em contato com sua família.»

Jin-yeong admite ter ficado muito nervosa no ano passado.

«A prova foi muito difícil. No fim do exame de língua coreana, eu fiquei tão estremecida que não consegui nem terminar de ler a última questão. Só adivinhei.»

A nota de cada aluno é publicada em um site nacional um mês depois do exame. Mas alguns sites publicam quase imediatamente depois do exame um cálculo que permite aos estudantes comparar sua nota total com o mínimo exigido para entrar na universidade de sua escolha.

Foi assim que Jin-yeong descobriu que havia falhado.

«Quando descobri que minha nota era menor do que eu precisava, meu coração se partiu. Eu senti que queria derreter no chão e desaparecer.»

No ano seguinte, ela fez o Sunueng pela segunda vez e conseguiu atingir uma nota suficiente para entrar na universidade.

População com educação superior

Mas por que tanto estresse ao redor desse «vestibular»?

A Coreia do Sul tem uma das populações com uma das melhores formações do planeta. Um terço das pessoas desempregadas têm diploma de uniersidade.

Com desemprego de jovens em seu maior nível em quase uma década, tem sido cada vez mais díficil entrar em uma boa universidade.

Como muitos jovens na Coreia do Sul, Eun-suh não sonha só com uma boa universidade, ela quer entrar na «Sky» – nome que abarca as três universidades mais prestigiosas do país, Seoul, Korea e Yonsei. São vistas como a Harvard e Yale (EUA) ou Oxford e Cambridge da Coreia do Sul.

Quase 70% das pessoas que se formam na escola vão à universidade, mas menos de 2% chega a uma das «Sky».

«Se você quer se reconhecido e realizar seus sonhos, você precisa ir a uma dessas três universidades», diz Eun-suh. «Todos te julgam com base no seu diploma e de onde ele veio.»

O prestígio de entrar nas «Sky» é também uma das melhores maneiras de conseguir um emprego em um dos conglomerados familiares conhecidos como «chaebol», que significa «clã rico».

A economia da nação é ligada a essas poucas e gigantes dinastias que incluem a LG, Hyundai, SK, Lotte, e a maior de todas, Samsung.

«Todos os anos, os jornais publicam quantos advogados, juízes e executivos dos grandes conglomerados se formaram nas universidades ‘Sky'», comenta Lee Do-hoon, professor de sociologia na Universidade Yonsei, o «Y» de «Sky».

«Isso faz as pessoas pensaram que se estudaram na ‘Sky’, podem conseguir um bom emprego. É por isso que muitos familiares e estudantes querem tanto entrar nessas universidades. Mas o número de vagas e oportunidades nessas grandes empresas na verdade é bem pouco.»

Formar-se em uma boa universidade na Coreia do Sul não garante um bom emprego aos jovens, explica Do-hoon. O nível de competição entre os que se candidatam às vagas é bem grande.

Cursinho

Com tanto de seu futuro ditado pelo resultado de um só exame, a revisão começa cedo.

Desde que tinha quatro anos de idade, Eun-suh, uma aluna diligente e organizada, se prepara para o exame que fará nesse ano.

«Vou para a escola às 7:30 para estudar sozinha. As aulas começam às 9h e duram até as 17h. Depois da aula, janto, vou para o ‘hagwon’ e depois volto para casa por volta de meia-noite.»

Um «hagwon» é um cursinho com aulas de revisão lecionadas por professores – tanto pessoalmente, como online.

Há mais de 100 mil hagwons, ou cursinhos, na Coreia do Sul e mais de 80% das crianças e adolescentes coreanos os frequentam. É uma indústria de US$ 20 bilhões. Alguns dos professores «celebridade» ganham milhões por ano.

Eun-suh vai para o hagwon seis vezes por semana para aulas extra de matemática e inglês. Ela estuda até no fim de semana, normalmente em uma «dokseosil», uma sala de revisão.

«Dokseosils normalmente são escuras. São projetadas para que você estude sozinho, então, cada cubículo é rodeado de cortinas compridas. Você entra, liga seu abajur e estuda», ela explica.

O Suneung já foi visto como uma fonte de mobilidade social, uma forma de estudantes mais pobres acessarem a educação superior. No entanto, a pressão para que pais paguem milhares de dólares em aulas privadas tem deixado famílias mais pobres para trás.

Especialistas como o professor Do-hoon dizem que os custos crescentes são um dos motivos principais para que a taxa de natalidade da Coreia do Sul seja uma das menores do mundo.

«O alto custo de preparar as crianças para a universidade é um dos principais motivos pelos quais estamos vendo níveis baixos de fertilidade. É sobre qualidade, não quantidade. Os pais preferem investir em uma quantidade menor de filhos.»

Sucessivos governos têm tentado conter a indústria dos cursinhos, tanto para o bem do bolso dos pais, quanto para o bem-estar dos alunos.

Hoje, por lei, cursinhos em Seoul não podem fechar depois das 22h e não podem ensinar conteúdo antes que seja ensinado nas escolas. Taxas também foram reduzidas.

Para Do-hoon, não é suficiente.

«Mesmo com essas mudanças, o setor privado na educação domina a Coreia do Sul. É tão comum mandar alunos para o cursinho e aulas privadas que aqueles com dinheiro ainda terão mais chance de entrar em uma universidade de prestígio.»

E o bem-estar mental dos alunos?

Outra crítica ao Suneung é o fardo à saúde mental dos estudantes.

Para o psicólogo Kim Tae-hyung, que trabalha em Seul, as crianças coreanas estão «crescendo sozinhas, estudando sozinhas». «Elas são forçadas a estudarem muito e competirem com seus amigos. Esse tipo de isolamento pode causar depressão e pode ser um grande fator para suicídio.»

No mundo todo, suicídio é a segunda causa de morte entre pessoas jovens, mas na Coreia do Sul é a causa número um e morte de jovens entre 10 e 30 anos.

O país também tem os maiores níveis de estresse entre jovens entre 11 e 15, em comparação com qualquer outro país industrializado do mundo, segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

O psicólogo diz que a pressão na sociedade coreana começa cedo.

«As crianças estão ficando nervosas desde muito cedo. Até alunos da primeira série debatem sobre que emprego paga mais.»

Para ele, a obsessão nacional com educação e emprego são os principais problemas dos jovens coreanos.

«A alta taxa de suicídio está sendo causada pela diferença entre a falta de oportunidades de emprego e as expectativas dos alunos de seu próprio sucesso. Também existe uma falta de estratégia para lidar com o estresse.»

Muitos especialistas enfatizam que a pressão educacional não é a única causa. O rápido crescimento de cidades, além de um declínio nas estruturas familiares tradicionais, de muita proximidade, também promovem sentimentos de isolamento e depressão.

Taxas de suicídio

Por mais de uma década, o governo tem tentado dar soluções às crises de saúde mental da população, investindo em campanhas, criando linhas telefônicas para as quais se pode ligar para aconselhamento e abrindo mais vagas em hospitais psiquiátricos.

Mas, ao contrário de outros países da OCDE, na última década a taxa de suicídios da Coreia do Sul continuou a crescer.

O governo também tentou diminuir a importância do Suneung criando outras alternativas para aumentar as chances de entrada nas universidades, como trabalho voluntário. Mas, para Eun-suh, isso só fez o processo ficar mais estressante.

«Agora, há outras maneiras de conseguir pontos, mas na prática isso só deixa tudo mais confuso, porque agora temos que nos preocupar com mais coisas. Temos que conseguir fazer tudo, incluindo atividades extracurriculares como voluntariado e outros exames escolares.»

Quando terminar a prova, Eun-suh saberá se realizou seu sonho de entrar em uma universidade Sky.

Ela diz que só tem que controlar sua ansiedade.

«Todas as vezes que recebo os resultados dos simulados, fico deprimida. Me pergunto: ‘Posso ir para a universidade que quero?’. Eu posso ficar satisfeita com meu lugar no ranking em comparação ao resto da escola, mas daí me comparo com o resto do país e fico assustada. Tão assustada que não consigo mostrar para minha mãe.»

Mas Jin-yeong, que agora já está na universidade, olha para trás com segurança.

«Vejo estrangeiros no YouTube tentando resolver questões do Suneung. Eles acham muito difícil. De fora, sei que parece difícil, mas não é tão assustador quanto parece», diz ela. «Em vez de ter pena de nós, queria que estrangeiros vissem o quão incríveis somos.»

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