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“Tiraram minha mãe grávida e meu pai de mim aos 2 anos; até hoje me pergunto por que estou vivo”

Luis Recabarren, seus pais e seu tio foram interceptados em 1976 em uma operação da inteligência chilena. Todos foram detidos, no que foi o último dia em que ele viu seus entes queridos vivos. Em um testemunho íntimo e comovente, Luis lembra seu passado em conversa com a BBC News Mundo

«Por que eu sobrevivi?». Essa é uma das perguntas que há décadas marca a vida do chileno Luis Emilio Recabarren Mena.

Para entendê-la, é preciso conhecer sua história.

Há 42 anos, quando tinha 2 anos e meio de idade, ele perdeu em menos de 48 horas seu avô paterno, um tio, seu pai, sua mãe e o irmão ou irmã que ela carregava no ventre.

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O ano era 1976 e o ​​Chile vivia sob o regime militar de Augusto Pinochet.

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Em 29 de abril, quatro membros de sua família foram detidos durante uma operação da agência de inteligência chilena.

Recabarren era um deles e foi o único que não desapareceu.

Ele foi o único sobrevivente. E ainda não sabe por quê.

Até hoje Recabarren tenta reconstruir o que aconteceu naquele dia e descobrir qual foi o destino de seus pais, do seu tio e do seu avô, que também sumiu apenas um dia depois do restante da família.

Eles estão entre as cerca de 40 mil vítimas – entre presos políticos, torturados e mortos – da ditadura militar no Chile, que se estendeu entre 1973 e 1990, sob o governo de Augusto Pinochet.

Ele tem falado com testemunhas, lido arquivos, buscado pistas em fotos. Mas ainda se vê diante de lacunas.

Em um doloroso depoimento dado em sua casa na Suécia, onde vive desde 1984, Recabarren – neto da ativista dos direitos humanos Ana González, que morreu em 26 de outubro – abre seu passado e suas memórias à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.

Ele afirma que vai lutar até morrer para descobrir quem matou seus pais.

O dia

Em 29 de abril de 1976, Nalvia Mena Alvarado, que tinha 21 anos, saiu com seu único filho, Luis, para encontrar o marido em seu escritório.

Luis Emilio Recabarren tinha 29 anos e trabalhava em um bairro no centro de Santiago.

No caminho de volta, a família se encontrou com um dos irmãos do pai, Manuel Guillermo, e os quatro seguiram juntos para a casa dos avós paternos, Ana González e Manuel Recabarren.

Desde seu nascimento, «Puntito», como Luis era carinhosamente chamado, viveu com seus pais e avós naquela casa.

«Nos capturaram ao descermos do ônibus», diz o filho.

«Chegando no ponto de ônibus 16 em Santa Rosa, havia uma operação com três carros estacionados. Eles estavam nos esperando.»

«Quando meu pai viu que eles pegaram minha mãe, que também estavam comigo, tentou reagir. Mas eles o golpearam no estômago com um fuzil. Depois nos colocaram em um dos veículos e os três carros saíram às pressas.»

O abandono

No mesmo dia da detenção, Luis foi separado de seus pais.

Em determinado momento alguém o colocou em um veículo preto e o deixou a um quarteirão da casa de seus avós paternos.

«Me deixou na rua em pleno toque de recolher.» Uma vizinha me ouviu chorar, olhou para fora e disse: «É Puntito!». Ela saiu, me pegou e me levou para a minha avó.

No dia seguinte, em 30 de abril, seu avô paterno saiu muito cedo para procurar seus filhos e sua nora.

Ele nunca mais voltou. Também desapareceu.

Desesperada, sua avó Ana González foi procurar a mãe de Nalvia, Ernestina Alvarado, para contar o que havia acontecido.

Assim começou a busca incansável de suas avós por seus pais, seu avô e seu tio.

O silêncio

Depois de ser levado para casa, «Puntito» ficou um mês sem conseguir falar.

Sua educação ficou a cargo de sua avó materna, Ernestina. Ana a visitava com frequência e se tornou uma figura constante e amada em sua vida.

«Eu adormecia chorando todas as noites», diz ele.

«Sentia saudade dos meus pais. Eles me davam muito amor. Eu sentia que aquela não era minha casa, que devia estar em outro lugar, que aquilo era temporário, por isso pensava que não devia incomodar. Dizia para mim mesmo: ‘Devo comer toda a comida, devo me comportar’.»

Ele confessa que, apesar do amor que recebia dos entes queridos, se sentia órfão e houve vezes em que tentou fugir de casa.

Seus parentes nunca tentaram disfarçar o que havia acontecido com seus pais.

«Todo o tempo eles estiveram com a verdade crua, real, sem esconder nada, com o objetivo de processá-la.»

‘O que minha mãe fez para que me libertassem?’

Quando aprendeu a ler, ele tentou entender a informação que havia «lá fora» sobre as torturas e os abusos do governo.

Ele começou a se perguntar: «Será que isso aconteceu com minha mãe? Eles a torturaram? Deram choques elétricos no meu pai, no meu avô, no meu tio? O que aconteceu com eles nos últimos momentos?»

E surgiram perguntas muito fortes que o intrigam até hoje:

«Por que eu sobrevivi?»

«O que eles fizeram para que me libertassem?»

«O que minha mãe fez para que me deixassem?»

«Naquela época eles também matavam crianças.»

Então, através dos depoimentos de testemunhas «se soube que eles foram levados para o campo de tortura de (Villa) Grimaldi e depois transferidos para outros lugares. Aí o rastro deles se perdeu. Alguns dizem que os mataram e os jogaram no mar» .

A decisão de partir

Sob o abrigo de um setor «solidário» da Igreja Católica, suas avós e outras mães e familiares dos desaparecidos começaram a se reunir.

Assim, deram vida à emblemática Associação dos Familiares dos Detidos Desaparecidos (AFDD).

Ana e Ernestina levavam Luis aos encontros e lá ele era feliz com outras crianças que estavam passando por tragédias parecidas, mas sobre as quais não conversavam. Eles só queriam brincar.

«Corríamos pelos corredores e pátios da Vicaría de la Solidaridad (uma comissão especial criada para ajudar os chilenos que, como resultado dos eventos políticos da época, estavam em séria necessidade econômica ou pessoal), que ficava no centro de Santiago. Me sentia especial quando me levavam para lá.»

Mas a hora de deixar o Chile havia chegado. Ele tinha 11 anos.

«No final de 1984, quando minha família materna foi destruída, meus outros tios foram levados para campos de detenção e foram torturados», diz ele.

Sua avó Ernestina não viu outra opção senão levar ele e as outras netas para a Suécia.

‘E se eles aparecerem?’

Ernestina começou a prepará-lo para a partida. Falou da Suécia, de suas florestas, de seus parques, de sua social-democracia, de seus direitos civis.

E isso, mais a experiência de entrar em um avião pela primeira vez, o deixou entusiasmado, mas outra pergunta surgiu:

«E se meus pais aparecerem? Eu tenho que estar aqui, senão eles não vão me encontrar», diz ele.

«Eu pensava, sonhava que eles voltariam e queria estar lá quando isso acontecesse.»

Mas eles se foram.

‘Vou lhe trazer um presente’

Recabarren fica com a voz embargada quando descreve o momento em que teve que se despedir de «um amigo de alma», um menino que morava na vizinhança.

«Eu prometi a ele, Sérgio, que eu iria voltar…»

Essa oração é seguida por silêncio.

«E…»

Mais silêncio.

«Eu disse a ele: ‘Eu prometo voltar ao Chile e vou lhe trazer um presente’. Nós choramos muito até nos despedirmos.»

No caminho para o aeroporto, ele se lembra «da tremenda dor de deixar parentes que tentaram compensar o desaparecimento (dos pais) com muito amor».

«Era a tristeza de abandonar meu país, (…) de saber que teria apenas uma avó», diz ele.

Suécia

Na nação europeia, uma nova vida começou, embora com a mesma dor.

«Eu continuava adormecendo chorando, mas em silêncio, para não incomodar».

«Era um luto eterno, mas eu tentava estudar, aprender o idioma, comecei aulas de natação, praticava esportes.»

Ele conta que em Estocolmo já havia uma comunidade chilena que sabia quem ele era.

«Era o meu povo, minha gente, recebi um carinho enorme. Os pais sabiam da história, mas seus filhos, não.»

Um irmão

«Quando você era criança, alguma vez chegou a pensar que poderia ter tido um irmãozinho ou uma irmãzinha e que eles também o levaram embora?», nós perguntamos a ele.

«O tempo inteiro, o tempo inteiro», disse.

E com a voz embargada, continuou: «Me dei conta de que essa pitada de esperança, que continuava crescendo, não estava me deixando viver, não estava me deixando pensar».

«Quando criança, pensava com esperança: ‘Talvez eu tenha um irmão’. Na Suécia, eu cresci com minhas primas, então me perguntava: ‘Terei um irmão, terei uma irmã?'»

À noite, quando ele dormia, sonhava com os pais.

«Sonhava que abraçava minha mãe pela cintura.»

Quando completou 29 anos, a idade em que seu pai desaparecera, ele se perguntava como teria sido o relacionamento com ele se nada tivesse acontecido: «Seríamos bons amigos?».

«Os amigos dos meus pais me dizem que eu me pareço muito com minha mãe e que também tenho um pouco do meu pai.»

A vingança que não chegou

«Você se lembra quando percebeu que não veria seus pais de novo?», perguntamos a ele.

«Foi um longo processo», responde, «que chegou ao fim na Suécia».

«Quando chorava à noite, comecei a aceitar que eles haviam desaparecido para sempre e a pensar que foram assassinados, que haviam sido jogados no mar. Que passaram por coisas cruéis.»

«Lutava contra mim mesmo e me dizia: ‘Eu tenho que me vingar, tenho que ser um guerrilheiro, tenho que encontrar os culpados’.»

Quando contou isso à avó, ela ficou furiosa e disse:

«Não, não, não! é isso O que eles querem, que o ódio consuma você e você não vai poder comemorar o fato de ser o sobrevivente dos seus pais. E você tem que contar, tem que contar o que aconteceu.»

Pouco a pouco, em plena adolescência, ele «entendeu» que «agora eles estavam em paz».

«E que eu tinha que encontrar meu centro, meu equilíbrio, para poder ter uma vida.»

A partir dessa perspectiva de amor e busca de justiça que suas avós incutiram nele, ele decidiu encarar sua vida.

Ele também a enfrentou com algo de que seus pais gostavam: arte, música e balé. Ele estudou na Royal Swedish Ballet School, tornou-se dançarino profissional e fez apresentações em vários países.

A reconstrução dos fatos

Recabarren sabe alguns detalhes do que aconteceu em 29 de abril de 1976, porque houve várias testemunhas nas fases de prisão e desaparecimento de seus pais e tio.

«Isso é o que você lê nos depoimentos que foram colhidos e no que diz o relatório Rettig, que compila cada caso», diz ele.

O Relatório Rettig foi elaborado pela Comissão da Verdade e Reconciliação, um órgão criado com a chegada da democracia para investigar as violações dos direitos humanos durante a era de Pinochet.

Em 1991, esse relatório, que contabilizava apenas desaparecimentos e execuções, reconheceu 2.279 mortes nas mãos de agentes do Estado.

Uma lembrança ‘muito forte’

Mas além do que leu, investigou e do que lhe foi dito, Luis afirma que, apesar de sua pouca idade na época, há algo de que se recorda do dia em que viu seus pais e seu tio pela última vez.

E ele conseguiu lembrar depois de receber ajuda psicológica focada em pessoas com estresse pós-traumático crônico na Cruz Vermelha Sueca.

«A psicóloga me ajudou a extrair uma memória em que vejo minha mãe muito perto de mim, conversando comigo, e atrás dela há um corpo no chão. Na porta há outro homem, parado. Não sei se é meu pai ou meu tio, está tentando ver o que está acontecendo lá fora. Estamos em um quarto».

Esse quarto, acredita ele, foi o lugar onde ficaram detidos.

«Nessa lembrança, como você vê sua mãe?», perguntamos a ele.

«Parecia um anjo», responde. «É uma lembrança que eu tenho muito, muito forte.»

Por que seus pais?

Quando perguntamos a Luis porque ele acha que seus pais foram presos, ele reflete sobre seu nome.

«Luis Emilio Recabarren Serrano (1876-1924) foi o fundador do Partido Obrero no Chile há cerca de cem anos (1912), não sei se somos parentes ou não. Nunca foi relevante para mim.»

Mas além dessa possível associação que os agentes podem ter estabelecido, seu pai foi um líder sindical.

«O pai e os irmãos da minha mãe foram líderes sindicais. Todos eles eram idealistas, foram uma geração com potencial político que queria uma mudança na sociedade.»

O objetivo do governo, diz ele, era separar as famílias que tinham uma posição política de oposição. «Eles queriam matar idéias, (fazer) um genocídio político».

Seus pais militavam no Partido Comunista. «Eles não eram violentos, não eram terroristas. Só queriam transformar a sociedade, lutar pela igualdade».

Tornando-se a imagem de seus pais

Luis sabe que seus pais «se apaixonaram em um Congresso do Partido Comunista».

Foi o que suas avós e seus tios lhe contaram.

«Meu pai era muito carismático, chamava muita atenção das meninas. Mas no começo minha mãe não dava a menor bola a ele porque sabia como era», diz sorrindo.

Desde a adolescência, Nalvia «se opunha às desigualdades», gostava de ajudar A comunidade e «não era daquelas que esperavam que alguém viesse resolver os problemas da comuna».

«Tenho a impressão de que minha mãe era muito delicada. Ela cantava no coro do liceu francês, desenhava, tinha qualidades artísticas.»

Tanto seu pai quanto sua mãe gostavam muito de balé. Contam a ele que a mãe ouvia música clássica quando estava grávida.

Ambos eram magros e muito altos «para a média dos chilenos». Ele mesmo tem 1,86 metros de altura.

‘Até eu morrer’

Em uma entrevista de Recabarren com a jornalista Ivonne Toro, do jornal chileno La Tercera, publicada em 29 de outubro, ele diz que precisa saber quem matou sua mãe.

«Até hoje eu não tenho informações concretas sobre como foi a operação contra os meus pais ou quem estava envolvido», disse ele à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.

«Não pude conhecer a verdade completa.»

«Por toda a minha vida, até eu morrer, vou buscar a verdade sobre o que aconteceu. Não vou parar. E se eu morrer, meus filhos a buscarão. Isso vai de geração em geração. É incansável.»

Hoje ele está casado com a jornalista sueca Sara Recabarren e tem três filhos, de 7, 11 e 15 anos. Com eles, aprendeu o que realmente é o amor incondicional.

«Enquanto eu for forte, eles serão fortes», diz ele.

«Eles vão continuar a luta. Minha inclinação como pai é protegê-los, mas sei que eles poderão transformar toda essa dor em algo positivo».

‘Um dever’

Recabarren diz que, enquanto se sentir com força, continuará contando sua história. Mas isso não é fácil.

«Meus tios que sobreviveram à tortura têm dificuldade em falar sobre o que passaram até mesmo com seus próprios filhos.»

«Agora que minha avó paterna não está aqui, eu tenho que fazer isso. É um dever.»

«Para mim o Chile é um paradoxo: odeio o país pelo que me causou e, ao mesmo tempo, amo o país porque sou de lá, porque é o meu povo e porque depois da morte da minha avó sinto sua solidariedade, seu carinho».

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