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A saga de um professor brasileiro em busca de uma viajante misteriosa dos anos 70

O professor de português Marcelo Nogal passou dois anos procurando a identidade e a trajetória de mulher retratada em fotos antigas.

O encantamento por conhecer outros países e culturas distintas estão evidentes nas fotografias da viajante. As imagens foram feitas na década de 70, período em que não era comum que brasileiras viajassem de modo independente. 40 anos depois, os registros, que outrora marcaram a vida daquela mulher, se tornaram um mistério compartilhado nas redes sociais.

Há dois anos, as imagens da viajante foram descobertas pelo professor de língua portuguesa Marcelo Nogal, de 42 anos. Assim como a mulher, ele é apaixonado por fotografias e viagens – já conheceu 80 países. Um fato causou surpresa em Nogal: a desconhecida visitou, quatro décadas atrás, diversas regiões que ele próprio conheceu nos últimos 12 anos.

O professor, que mora em São Paulo, confessa ter se surpreendido com algumas semelhanças entre suas viagens e as da desconhecida, que aparenta cerca de 30 anos na época.

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«Nós fomos a locais idênticos. Isso me deixou muito surpreso, principalmente porque era uma mulher independente viajando pelo mundo em plena década de 70″, relata, por telefone, à BBC News Brasil.

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Em algumas fotos, a desconhecida aparece, décadas antes, exatamente nos mesmos lugares onde o professor esteve. A situação acontece em imagens como uma em que ela está um mirante de Olinda, em Pernambuco, e outra na área central de Manhattan, nos Estados Unidos.

«Por mais que sejam locais turísticos, foi uma coincidência muito grande o fato de ela ter cruzado a minha vida», afirma.

«É uma coisa de destino, não sei explicar. Esse material poderia parar nas mãos de outra pessoa, que talvez não desse a menor importância. Mas é muita coincidência ser encontrado por mim, que tenho tanto em comum com ela», afirma Nogal.

Ele se diz cético sobre questões espirituais, mas confessa que o caso da viajante mexeu com suas crenças.

O professor encontrou, ao todo, mais de 200 fotografias da mulher. Nas imagens, ela conheceu oito países, além de ter ido a cidades brasileiras. Entre os destinos que aparecem nas fotos, a viajante acompanhou as Olímpiadas de 1976, no Canadá, visitou Machu Picchu, no Peru, e viajou à Argentina.

Para descobrir quem era a desconhecida, Nogal digitalizou as fotografias e divulgou o caso nas redes sociais há pouco mais de um mês. Por meio de publicações, em grupo de Facebook e em seu perfil, relatou sua ligação com a viajante e pediu informações sobre ela.

Nas redes, ele não obteve respostas. Nogal somente descobriu quem era a viajante no último sábado (29).

Um projetor antigo e o início de um quebra-cabeça

As fotografias da viajante misteriosa chegaram ao professor por meio do cunhado dele. Há quatro anos, o parente comprou um velho projetor de slides em uma loja de itens antigos e, meses depois, presenteou Nogal com o objeto.

«O meu cunhado percebeu que aquilo não teria utilidade nenhuma para ele e me deu, porque pensou que seria mais útil para mim, por eu ser professor», comenta.

Junto com o projetor, o cunhado entregou uma caixa de slides, que veio com o aparelho. Por dois anos, os itens ficaram guardados em um armário do professor.

«O objeto não funcionava, então, deixei de lado. Dois anos depois, comprei uma lâmpada específica para ele.»

O aparelho funcionou. Nogal reproduziu os slides que estavam em uma caixa, armazenada em seu guarda-roupa, e viu as fotografias da viajante.

«Aquelas imagens me deixaram impressionado, porque mesmo sendo antigas, elas tinham muito a ver comigo. Fiquei admirado com a história daquela mulher, mesmo sem conhecê-la», conta.

Ele começou a pesquisar sobre as pistas que havia nas imagens, para tentar decifrar o mistério da desconhecida.

«Todo indício que eu via, pesquisava. Por exemplo, vi um carro e fui procurar o ano de fabricação dele. Também tinha uma foto em que aparecia um filme, então fui buscar o ano de exibição dele. Assim fui montando esse quebra-cabeça», relata.

Depois de meses de busca por informações, Nogal chegou à conclusão de que as fotos foram tiradas entre os anos de 1970 e 1976. Mas o professor não conseguiu descobrir a identidade da viajante. Ele chegou a buscar informações na loja onde o projetor foi comprado, mas não obteve êxito. «Eles não sabiam de nada por lá, até porque fazia anos que tinham vendido o aparelho.»

Com a falta de informações, ele foi criando hipóteses para as imagens da viajante. Naquelas que considera as mais antigas, ela está ao lado de um homem e um casal de idosos, em cidades históricas de Minas Gerais e em Brasília. «Imaginei que pudesse ser um irmão ou namorado dela, junto com os pais ou sogros», diz.

Nas fotos dos destinos seguintes, ela está ao lado de outras mulheres, possivelmente amigas ou parentes. O homem e o casal de idosos não aparecem mais. «Ela poderia ter se separado ou, caso seja irmão, ela apenas decidiu fazer viagens mais independentes.»

Por dois anos, Nogal conviveu com a dúvida sobre a desconhecida. Há um mês, decidiu apelar para as redes sociais e fez publicações sobre a viajante. «Algumas pessoas chegaram a me ajudar, procurando por informações em lugares que aparecem em algumas fotos, mas nada adiantou», comenta.

Mesmo com as dificuldades, o professor não desistiu. «Desde que encontrei essas imagens, percebi que elas foram recordações importantes para essa mulher. Por isso, pensei que seria fundamental entregar as fotos para algum parente dela ou para a própria», diz.

Percurso na América Latina

Nas imagens encontradas por Nogal, um dos destinos da viajante é Salvador (BA). Acompanhada de uma amiga, ela posa em pontos turísticos, como o Elevador Lacerda e praias da região. A viagem seguinte é para Pernambuco, onde aparenta estar sozinha. As fotografias mostram a viajante na praia e em um centro espírita, no Recife. Em outras imagens, ela está em Olinda, onde visitou o mirante.

Entre 1974 ou 1975, segundo as pesquisas feitas pelo professor, ela viaja para a Argentina, acompanhada da mesma mulher que a acompanhou em Salvador. Um dos locais turísticos que visita é o Caminito, uma rua tradicional do país, famosa por sua característica cultural. Nogal também visitou o lugar, em 2007, e tirou fotos semelhantes às da desconhecida.

Em 1976, ela viaja para Nova York, nos Estados Unidos, onde visita pontos turísticos. Alguns deles, semelhantes aos que Nogal conheceu em 2016. Em uma das fotografias, a viajante posa em uma região de Manhattan em que as torres gêmeas aparecem ao fundo. Há dois anos, o professor também fez pose no mesmo local, mas desta vez sem os prédios imponentes, destruídos no ataque de 11 de setembro de 2001.

Possivelmente depois dos EUA, ainda em 76, a mulher vai para Montreal, no Canadá, onde acontecem os Jogos Olímpicos. Nas fotos, a desconhecida acompanha a abertura da competição esportiva. Este foi o único país que Nogal nunca visitou. Nas imagens seguintes, ela aparece no México, onde conhece a Ciudad de México e Acapulco.

Os destinos seguintes são na América do Sul, acompanhada de uma amiga que não aparece nas fotos anteriores. Um dos países que ela visita é a Bolívia. Na região, a viajante posa em frente ao estádio Hernando Siles, em La Paz. Em 2010, o professor também esteve no mesmo local, onde também fez fotos.

Em outras fotografias, a desconhecida visita o Peru, onde conhece lugares nos quais Nogal também passou, décadas depois. Em comum, foram ao parque arqueológico Sacsayhuaman e à região de Machu Picchu, áreas construídas pelos incas.

O professor Mário Beni, membro do Conselho Nacional de Turismo (CNT), ressalta que as brasileiras não tinham o hábito de viajar sozinhas ou com amigas durante a década de 70.

«Isso não era muito comum na época, por uma questão cultural. Não diria que era algo raro, porque havia brasileiras que faziam isso, porém eram situações bem mais incomuns. Mas na Europa, por exemplo, as mulheres já faziam inúmeras viagens sozinhas», explica.

Entre as imagens encontradas nos slides, há ainda algumas poucas fotos da viajante em Quito, no Equador, e em Cartagena e Bogotá, na Colômbia. «Não sei ao certo a ordem das viagens na América do Sul, nem mesmo se elas representam o fim das viagens dela. Os slides fotográficos se encerram nessa época, então, não consigo imaginar o que aconteceu depois», comentou Nogal, em entrevista concedida antes de descobrir sobre a viajante.

Finalmente, a descoberta

A BBC News Brasil conversou com Nogal pela primeira vez em 25 de setembro. No período, ele seguia em busca da mulher que aparece nas fotos. A reportagem, inicialmente, teria o objetivo de retratar a busca dele pela viajante desconhecida. Dias depois da entrevista, o professor publicou uma mensagem em suas redes sociais. «Descobri quem é a viajante», comemorou.

Ele relata que estava procurando por documentos em seu guarda-roupa, no último dia 29, quando avistou, no chão, um papel com o nome ‘Elaine’.

«Eu fiquei curioso, porque não conheço nenhuma mulher com esse nome. Mas depois de um tempo refletindo, cheguei à conclusão de que o papel havia caído da caixa de slides», conta.

Nogal pesquisou, no Google e em redes sociais, por «Elaine + Espiritismo».

«Sabia que aquele nome poderia não ter relação com ela, mas achei melhor procurar», explica.

Ele incluiu o espiritismo em razão das diversas fotos nas quais a mulher está em um centro espírita em Pernambuco. Na busca, encontrou Elaine Curti Ramazzini. Depois de analisar as fotos atuais e as antigas, concluiu: havia solucionado o mistério da desconhecida.

Elaine Curti Ramazzini era considerada uma mulher à frente de seu tempo. Psicóloga renomada – chegou a palestrar em universidades dos Estados Unidos -, ela também era escritora espírita, religião que seguiu da adolescência até à morte. Desde a década de 60, viajava pelo mundo com frequência, sozinha ou acompanhada de amigas ou parentes. Nunca casou, nem teve filhos. Segundo os familiares, viveu para ajudar os outros.

‘Foi uma descoberta que mexeu com a gente’

Em uma publicação no Facebook, Nogal descobriu que Elaine morrera em julho deste ano. No perfil dela, observou que a mulher, mesmo idosa, continuou viajando. O professor entrou em contato com o sobrinho dela, o advogado Rodolpho Ramazzini, que mora em São Paulo, e comunicou sobre as fotos de 40 anos atrás.

As fotos antigas emocionaram o advogado e outros familiares dela.

«Foi uma descoberta que mexeu com a gente», diz. Uma coincidência chamou a atenção de Rodolpho no dia em que Nogal entrou em contato pela primeira vez. «Era dia 29 de setembro, mesma data do aniversário dela», emociona-se o sobrinho de Elaine.

O advogado esclarece que o homem e o casal de idosos que acompanham Elaine, em viagens por Minas Gerais e Brasília, são o irmão e os pais dela, todos já falecidos.

Rodolpho acredita que a tia perdeu as fotografias encontradas por Nogal durante uma mudança. «Ela se mudou muitas vezes ao longo dos anos. Então, creio que isso se perdeu em algum desses momentos. Não acredito que ela tenha se desfeito, porque ela gostava de ter os registros guardados.»

Sonhos conquistados

As viagens eram uma das maiores paixões de Elaine, que conheceu mais de 60 países.

«Ela veio de uma família pobre. Então, logo que passou a estudar, ter suas conquistas e conseguir certa condição financeira, começou a realizar o sonho de viajar», relata o advogado.

Nas viagens mais recentes, a psicóloga costumava levar os sobrinhos e a mãe para acompanhá-la. «A minha avó morreu aos 94 anos. Meses antes, a minha tia Elaine viajou com ela para um safári na África do Sul», comenta Rodolpho.

«A minha tia era uma mulher incrível, tanto no campo profissional, como no espiritual e pessoal. Ela sempre foi uma independente. Nunca precisou de homem para nada, porque sempre foi autossuficiente», orgulha-se.

A última viagem dela foi em janeiro, para os Estados Unidos, de onde partiu para um cruzeiro para o Caribe. Na época, ela estava em tratamento contra um câncer de pulmão.

«Nem a doença fez com que ela parasse. Mesmo fazendo sessões de quimioterapia antes da viagem, ela não deixou de ir com a gente», relembra Rodolpho. Meses depois, a doença avançou, atingiu o cérebro de Elaine e ela faleceu em 12 de julho, aos 78 anos.

Na terça-feira, Nogal e Rodolpho se encontraram em São Paulo. O professor levou as fotografias de Elaine para o sobrinho dela.

«Vou fazer um painel e guardar em casa, junto com as outras fotos que tenho dela», revela o advogado. Para o professor, a entrega das imagens marcou o fim da sua jornada em busca da viajante desconhecida.

«Agora, o meu objetivo foi concluído», comemora.

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