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“O problema dos ex-presidentes da América Latina é que eles custam a sair da política”, diz cientista político

Para professor Javier Corrales, especialista em política latino-americana, referendo que impediu regresso de Rafael Correa no Equador mostra nova atitude da região em relação a seus ex-mandatários, ‘figuras prepotentes e difíceis de conter’.

O referendo do domingo no Equador, que impediu Rafael Correa de concorrer novamente à Presidência do país, reflete uma mudança de postura da América Latina em relação a seus ex-presidentes, afirma Javier Corrales, professor de ciência política no Amherst College, dos Estados Unidos.

"Os latino-americanos se deram conta de que os presidentes – no poder e fora dele – são figuras prepotentes e difíceis de conter", diz Corrales em entrevista à BBC Mundo, o serviço em espanhol da BBC.

Especialista em política latino-americana, o cientista político acredita que a situação atual da região contrasta com a moda das reeleições presidenciais que ocorreram em meio ao boom econômico da década passada. Segundo ele, os ex-presidentes hoje atuam como uma espécie de "sol brilhante" que dificulta o surgimento de novas lideranças em seus partidos, embora também tenham uma rejeição forte – ele cita o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva como exemplo desse fenômeno.

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Veja a seguir os principais trechos da entrevista com Corrales, coautor de um livro sobre o legado de Hugo Chávez na Venezuela.

BBC – Na sua opinião, qual é o problema dos ex-presidentes da América Latina?

Javier Corrales – O problema dos ex-presidentes da América Latina é que custam muito a se retirar da política. E, na tentativa de seguir na ativa, mesmo que seu momento já tenha passado, tomam todos os tipos de atitude política que impedem a renovação de lideranças.

Eles geralmente são polarizantes: são adorados por seus seguidores, mas também geram rejeições muito profundas. A opção política costuma ser muito visceral. É muito difícil que surjam lideranças novas em seus respectivos partidos, porque os ex-presidentes são como um sol muito brilhante, que ofuscam os grupos novos dentro de seus partidos.

BBC – O senhor pode dar algum exemplo de um caso emblemático que esteja ocorrendo atualmente na região?

Corrales – Estamos em um ano em que os casos mais emblemáticos estão sendo interrompidos de alguma forma.

No caso da Colômbia, a batalha eterna do governo de (Juan Manuel) Santos é para deter o uribismo (referente ao ex-presidente Álvaro Uribe). Isso foi conquistado com uma mudança na Constituição para impedir a reeleição. No Peru, o fujimorismo (movimento ligado ao ex-mandatário Alberto Fujimori) é o tema central da eleição de (Pedro) Kuczynski, presidente do país.

Veja o caso do Lula no Brasil: até certo ponto, alguém pode dizer que Lula é o único capaz de vencer (Jair) Bolsonaro, mas também pode-se dizer que Bolsonaro surge por causa do Lula, porque há uma grande rejeição ao regresso do lulismo.

No Chile, é sempre Bachelet-Piñera-Bachelet-Piñera. Isso está trazendo um descontentamento muito grande em todo o país. Na Argentina, a eleição do ano passado girava em torno de tirar Cristina Kirchner do poder.

Ou seja, muitas vezes os ex-presidentes conseguem alçar políticos a posições importantes de oposição ou mesmo de governo. E isso é muito ruim, porque (os ex-presidentes) são muito polarizantes.

BBC – No Equador, os cidadãos decidiram limitar o número de mandatos presidenciais a apenas dois. Na prática, isso impede o ex-presidente Rafael Correa de concorrer a um novo mandato. Essa mudança, impulsionada pelo presidente Lenín Moreno, pode servir de exemplo para a região?

Corrales – Sim, é possível que este caso recorde os latino-americanos sobre o conceito de limite à reeleição: uma medida democrática necessária em países onde há muito caudilhismo.

É uma lição que os latino-americanos tiveram a partir do século 19. Mas, com o boom econômico dos anos 90, quando acabou a época de ajustes econômicos e começou um período de bonança, os eleitores latino-americanos permitiram que muitos presidentes se reelegessem. E se esqueceram que isso trazia mais caudilhismo, em vez de menos.

O caso do Equador é uma lembrança aos latino-americanos de que, por algum motivo, existe esta restrição à reeleição.

Os latino-americanos se deram conta de que os presidentes no poder, e fora dele, são figuras prepotentes e difíceis de conter. Portanto, se a América Latina quer evitar a continuidade, o que é importante para que haja alternância e democracia, não resta outra opção a não ser impor limites aos ex-presidentes.

BBC – Um ex-presidente latino-americano me disse, certa vez, que proibi-lo de voltar à Presidência seria impedi-lo de fazer o que faz de melhor: governar. Isso não deveria ser decidido a cada eleição, de acordo com os candidatos?

Corrales – Em todas as democracias existe o conceito de limite ao poder. Ou seja, não é impensável que sejam postos limites a um ex-presidente. É falso pensar que um ex-presidente é como um candidato normal. Ele tem muitas vantagens na competição. Não é como dar um castigo.

Podemos pensar nisso como um favor aos novos grupos políticos. Como a cota para mulheres no Congresso. Sabemos que as mulheres não podem competir em igualdade e é preciso colocar algumas restrições no espaço destinado aos homens. Bom, temos que criar um espaço para que os não são ex-presidentes possam competir.

BBC – No Equador, há quem advirta que Correa mantém uma base eleitoral importante e que poderia fortalecer-se ainda mais caso Moreno tome medidas impopulares para revitalizar uma economia em dificuldades. Impor limites à reeleição solucionaria realmente esse problema?

Corrales – Não. Veja o caso colombiano. Uribe não pode concorrer à reeleição, mas segue sendo a figura mais importante do conservadorismo. Porém, por não poder concorrer novamente, tem que pensar em outras opções, no que seus seguidores podem querer. Isso é muito bom e permite a competição.

Obviamente, proibir a reeleição não elimina o movimento ideológico por trás de um ex-presidente, nem faz com que seus seguidores deixem de segui-lo. O que se impede é que volte ao poder uma pessoa tão polarizante, que, na sua tentativa de voltar ao poder, gera muito prejuízo ao país.

Não é a solução definitiva para o problema do continuismo, mas evita que o continuismo se converta em um problema muito mais grave.

BBC – Há outros casos regionais que podem servir como referência para outros países em relação aos ex-presidentes?

Corrales – Para mim, o mais exitoso é esta reforma constitucional (que impede a reeleição). É sensível, geralmente é acatada e cumpre seu propósito de obrigar os ex-presidentes a buscar novos nomes e a debater.

Há uma espécie de retorno à ideia de que a democracia liberal foi sacrificada demais no período de boom econômico. Depois de ver o que aconteceu na Venezuela, no Equador, na Bolívia, com esses presidentes que querem se perpetuar e se sentem indispensáveis, os latino-americanos se deram conta de que um presidente ruim no poder é fatal, mas um ex-presidente que quer voltar é ainda mais perigoso.

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